Nota biográfica

Manuel António Pina (Sabugal, 18 de Novembro de 1943 – Porto, 19 de Outubro de 2012) foi um jornalista e escritor português, galardoado em 2011 com o Prémio Camões.

“Amor como em casa”, poema de Manuel António Pina.

24.12.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Facebooktwittermailby feather

“Morna”, poema de Daniel Filipe.

03.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta.)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.

Facebooktwittermailby feather

“Mãe Ilha” poema de Natália Correia.

02.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que p’ra mim sonhaste,
Ó mãe completa da manhã ao ocaso,
Pastora dos meus sonhos, minha haste.

Parti p’rás Índias do meu estranho caso
—ó danos que dos versos sois o engate!—
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu vão contraste.

Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou no canta dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.

Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e á onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul de mãe esperando.

Antologia Poética
Publicações Dom Quixote

Facebooktwittermailby feather

“Na mesa do Santo Ofício”, poema de Ary dos Santos.

01.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.

Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.

Que viemos, amámos, pecámos e partimos 

Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam

E que a nossa aventura,

E no vento que passa que a ouvimos, 

E no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos

E que enterrámos vivo o fogo que nos queima. 

Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,

Que nos espreguiçaremos na fogueira.

Facebooktwittermailby feather

“Completas” poema de Manuel António Pina.

31.10.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Facebooktwittermailby feather

“Ao meu cão”, poema de Cristóvam Pavia.

28.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deixei-te só , à hora de morrer.

Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de
aceitação De tudo… e apesar disso, sem o pedir,
tentando Insinuar que eu ficasse perto,

Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer

E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.

Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,

Que já tinhas perdoado tudo à vida

E começavas a debater-te na maior angústia,

a debater-te

Com a morte.

E deixei-te só , à beira da agonia, tão
aflito, tão
só e

sossegado.

Facebooktwittermailby feather

“Qualquer coisa de paz”, poema de Fernando Echevevarría.

27.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruína
a luz da fronte onde a atenção domina.

Fernando Echevarría, in “Figuras”

Facebooktwittermailby feather

“Romance de Tomazinho Cara-Feia”, poema de Daniel Filipe.

23.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará

Facebooktwittermailby feather

“Tudo quanto sonhei”, de Fernando Pessoa.

22.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.

Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.

A ti talvez, que não te têm dado,
Darão enfim…
A mim… Sei eu que duro e inato fado
Me espera de mim?

Facebooktwittermailby feather

“Tanto tempo sem nós”, poema de Samuel Costa Velho.

21.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deu tempo para lembrar tudo
enquanto o meu corpo embatia no chão.

Desde o primeiro olhar fresco que trocámos
até à ausência mútua,
revivi e desvivi, nesse instante.
Com os ossos a desistirem de resistir ao encontro
[com o chão suave que me abraçava
[e a dor/prazer/tu a começar a sentir-se.
Morri aos pedaços quando a queda acabou, quando
[todo eu me apaguei contra o teu peito.
[Deu tempo para um pensamento.

O amor ou a tua mão, pergunto-me com qual
[me abandonaste primeiro.


Facebooktwittermailby feather

“Fuzilaram um homem num país distante”, poema de José Gomes Ferreira

16.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Hoje proíbo as rosas de nascerem diante de mim!
Proibo as deusas de dançarem nos olhos

das crianças! Proibo os corpos das mulheres de terem
outro
destino que a morte!

Sim, proibo!

E (baixinho, em sonho) aos gritos no mundo ordeno
aos homens 
que
venham para a rua descalços

para sentirem nos pés nus

o silêncio da terra

– e o terror de viverem num planeta

onde os fuzilados não ressuscitam,

nem os malmequeres protestam com flores de luto
contra este sol que continua a fabricar primaveras

mecânicas e este cheiro tão bom a mulheres novas
nas árvores

com cio

Facebooktwittermailby feather

“A frouxidão no amor é uma ofensa”, poema de Bocage.

14.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.

Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.

Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.

Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo e não me faz ditoso.

em “Citações e Pensamentos de Bocage”

Facebooktwittermailby feather

“Piratas”, poema de Sophia de Mello B. Andresen.

13.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Facebooktwittermailby feather

“Árvores do Alentejo”, poema de Cesário Verde.

12.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Horas mortas … Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido … e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção de uma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores, corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

Facebooktwittermailby feather

“Carro para Campolide. Dia sexual”, poema de José Gomes Ferreira.

09.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Uma mulher de carne azul, semeadora de
luzes e de transes, atravessou o vidro

e veio, voadora

sentar-se ao meu colo

na nudez reclinada

dum desdém de espelhos.

(Mas que bom! Ninguém suspeita

que levo uma mulher nua nos joelhos.)

Facebooktwittermailby feather

“Noite Árvore”, poema de Luiza Neto Jorge.

08.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Noite única noite singular impressa
consagração das chuvas e das flores violadas

dos pássaros algemados pela fuga

dos silêncios nus prostituídos

das alcachofras indecisas alcachofras em
sangue das turbinas de aço onde as estrelas
escorrem

crescem árvores mais definitivas pálpebras
trémulas da noite

é o muro que eu recrio a cal sem vazios diários
todos de verdade nós todos férteis salvos
todos veias claras nós sementes

nós o susto fecundo de vivermos

nós os números e as letras e os desenhos

ah matem-me de noite punhais híbridos
sentinela das fronteiras extintas sentinela
última da noite

Facebooktwittermailby feather

“Invisível a meus olhos”, poema de Al-Mu Tamid

10.08.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Invisível a meus olhos,

Trago-te sempre no coração

Te envio um adeus feito paixão

E lágrimas de pena com insónia.

Inventaste como possuir-me

E eu, o indomável, que submisso vou
ficando! Meu desejo é estar contigo sempre

Oxalá se realize tal desejo!

Assegura-me que o juramento que nos une
Nunca a distância o fará quebrar.

Doce é o nome que é o teu

E aqui fica escrito no poema: Itimad.”

Facebooktwittermailby feather

“Quem vende a verdade?” de Fernando Pessoa.

29.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quem vende a verdade, e a que esquina?
Quem dá a hortelã com que temperá-la?
Quem traz para casa a menina
E arruma as jarras da sala?

Quem interroga os baluartes
E conhece o nome dos navios?
Dividi o meu estudo inteiro em partes
E os títulos dos capítulos são vazios…

Meu pobre conhecimento ligeiro,
Andas buscando o estandarte eloquente
Da filarmónica de um Barreiro
Para que não há barco nem gente.

Tapeçarias de parte nenhuma
Quadros virados contra a parede…
Ninguém conhece, ninguém arruma
Ninguém dá nem pede.

Ó coração epitélico e macio,
Colcha de croché do anseio morto,
Grande prolixidade do navio
Que existe só para nunca chegar ao porto.

Facebooktwittermailby feather

“Velhinha”, poema de Florbela Espanca.

28.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
“Já ela é velha! Como o tempo passa!…”

Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio d’oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!

Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente…
Já murmuro orações… falo sozinha…

E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente.
Como se fosse um bando de netinhos

Facebooktwittermailby feather

“As Mãos”, poema de Manuel Alegre.

27.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Com mãos se faz a paz se faz a guerra. 

Com mãos tudo se faz e se desfaz.

Com mãos se faz o poema – e são de terra.

Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.

Não são de pedras estas casas mas

de mãos. E estão no fruto e na palavra

as mãos que são o canto e são as armas.


E cravam-se no Tempo como farpas

as mãos que vês nas coisas transformadas.

Folhas que vão no vento: verdes harpas.



De mãos é cada flor, cada cidade.

Ninguém pode vencer estas espadas:

nas tuas mãos começa a liberdade.

Facebooktwittermailby feather

“Quimera” de Rosa Lobato Faria.

26.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.
Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.
Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.
Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.

Facebooktwittermailby feather

“Soneto de separação” de Vinicius de Moraes.

25.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

De repente do riso fez-se pranto

Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.



De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.


De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente.



Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.

Facebooktwittermailby feather

“O brinco da tua orelha”, poema de António Boto.

22.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

O brinco da tua orelha

Sempre se vai meneando; Gostava de dar um
beijo

Onde o teu brinco o vai dando. Tem um
topázio dourado

Esse brinco de platina;

Um rubi muito encarnado

E uma outra pedra fina.

O que eu sofro quando o vejo Sempre airoso,
meneando! Dava tudo por um bejo

Onde o teu brinco os vai dando

Facebooktwittermailby feather

“A Mentira Está em Ti”, poema de Alberto Caeiro.

21.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”
“Que é vento, e que passa,

E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”
“Muita coisa mais do que isso.

Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.
“Nunca ouviste passar o vento.

O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”

Facebooktwittermailby feather

“Publicação do Corpo”, poema de Alberto Cunha Melo

20.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando distanciar-me das altas

nuvens, onde sempre habitei,

devo levar algumas delas

para que saibam minha pátria.

Após soltar de espaço a espaço

as cascas vivas da memória,

devo levar para a cidade

o corpo, esta palavra forte.

Só meu corpo vai realmente

pisar nos jardins e nos pátios

e com mãos novas sacudir

as grandes árvores por perto.

Vou conduzi-lo com o cuidado

de livro muito alvo na tarde:

É minha única esperança

de estar bem vivo entre vocês.

Só meu corpo sabe virar

todas as páginas do tempo

e só ele foi publicado

completo, para ser seguido.

Alberto Cunha Melo, Poesia completa



Facebooktwittermailby feather

“Não gosto tanto de livros”, poema de Adília Lopes.

19.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

NÃO GOSTO tanto 

como Mallarmé

parece que gostava

eu não sou um livro

e quando me dizem

gosto muito dos seus livros

gostava de poder dizer

como o poeta Cesariny

olha

eu gostava
é que tu gostasses de mim

os livros não são feitos

de carne e osso

e quando tenho

vontade de chorar

abrir um livro

não me chega

preciso de um abraço

mas graças a Deus

o mundo não é um livro

e o acaso não existe

no entanto gosto muito

de livros 
e acredito na Ressurreição

de livro e acredito que no Céu

haja bibliotecas

e se possa ler e escrever

Facebooktwittermailby feather

“Nona Sinfonia”, poema de Ary dos Santos

18.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.

Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.

Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.

Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.

Ary dos Santos, in ‘O Sangue das Palavras’

Facebooktwittermailby feather

“Alentejano”, de Florbela Espanca.

15.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deu agora meio-dia; o sol é quente

Beijando a urze triste dos outeiros.

Nas ravinas do monte andam ceifeiros,

Na faina, alegres, desde o sol nascente.

Cantam as raparigas meigamente.

Brilham os olhos negros, feiticeiros. 

E há perfis delicados e trigueiros

Entre as altas espigas d’oiro ardente.

A terra prende aos dedos sensuais 

A cabeleira loira dos trigais

Sob a bênção dulcíssima dos céus.

Há gritos arrastados de cantigas…
E eu sou uma daquelas raparigas…

E tu passas e dizes: «Salve-os Deus!»

Facebooktwittermailby feather

“Soneto da hora final” de Vinicius de Moraes

14.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente
O beijo leve de uma aragem fria.

Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de treva aberta em frente.

Ao transpor as fronteiras do Segredo
Eu, calmo, te direi: – Não tenhas medo
E tu, tranquila, me dirás: – Sê forte.

E como dois antigos namorados
Noturnamente triste e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte.

Facebooktwittermailby feather

“Há cidade acesas”, de Sophia de Mello B. Andresen

13.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.

Facebooktwittermailby feather