António Salvado – “Pejaram os caminhos…”
03.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
António Forte Salvado (Castelo Branco, 20 de Fevereiro de 1936) é um poeta e escritor português. Além de ser autor de uma extensa obra poética, é também autor de ensaios e antologias, tendo sido a sua obra reconhecida várias vezes com prémios nacionais e internacionais.
03.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Pejaram os caminhos de cobiça,
a lama da inveja languinhenta
cobre as pedras do chão: e de mãos dadas
encontrar-me na curva pressentida
e minam como cirro de doença
que droga alguma poderá sanar. »
Tiro da estante o livro. Abro ao acaso
fixando os olhos leio aquelas linhas
e volto a folha – sigo impressionado
a descobrir sentidos …….. em surdina
interrogando sortes e destinos
por que partiu ali em tantas páginas
o livro que busquei…….. no labirinto
de tal desordem…. tão desalinhada?
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14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Entrego-te o dia de ontem, o dia de hoje, o dia de amanhã: daqueles receberás a luz restante e deste uma claridade maior.
A mesa onde nos sentarmos acolherá a perenidade das alianças, a castidade dos enlaces e das lealdades, o perfume de nomes recolhidos.
Entrelaçaremos os dedos, tacteando com os olhos o perfil dos lábios, os joelhos afagando até ao encontro.
Na imensidade do nosso consentimento hão-de deambular trilados de prazer, um veleiro transportará canduras de euforias a flutuarem, a ondejarem sem preguiça.
Que eu te ofereça, pois, a intemporal proeza da minha peregrinação que não ressoa, não, como algo de sombreado ou de taciturno. E se a carne me afervora ainda, se o frémito do peito me chameja contínuo, se a largueza dos impulsos jubila de calor os lampejas das veias, que sejas tu, só tu, quem lenifique a dureza do passado.
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14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ao ler teu nome gravado
na pedra branca em silêncio
não sei que estranho momento
é este que se desenha
entre eu estar ali e a lápide.
Uma súbita presença
de contornos definidos
dá calor à pedra fria
e a mim um certo arrepio
de quase contentamento.
Comunhão que nada apaga
nesse instante fugidio
ao ler com a boca fechada
na pedra inerme calada
um nome que é meu inscrito.
(Escrito para um concurso organizado pelo blogue Porosidade Etérea sobre o Dia do Pai.)
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14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Mais que lutar me atrai a placidez
desta noite serena, do seu calmo
desenvolver-se: alheia a sobressaltos
como feita de um único sossego.
Talvez lá fora gritem os tumultos
de mil vozes sofridas magoadas
e haja manchas perdidas na calçada
de corpos que passaram inseguros.
E outras tristezas cobrem o silêncio,
sem prémio carregado de receio,
desta insónia vulgar que não me deixa
ver afinal que à noite o dia vem.
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14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Escorro deste musgo as bátegas geminadas da chuva que, durante a noite, acetinaram os campos. As azinheiras, agora vejo, alegram-se robustecidas e quase voluptuosas; sublimam-se, dir-se-ia, na surdina das folhas, aclaram com maior insistência a viveza da atmosfera.
Aproveitarei este consentimento cintilante da natureza que me confidencia uma franja de tempo alheia a desencantos, a emboscadas, a ferezas: propícia enfim, e fecundamente, ao Canto. Vigiarei, apesar de tudo, com cautela, o estremecimento do coração, o percurso imponderado do pensamento.
Cada instante semeará agilidades e confianças, demoverá incertezas e letargias, modulará arabescos às entoações a surgirem.
Maravilhoso, apalpar nas mãos a água sobre o musgo da rocha a verter-se por ali abaixo, em silêncio, sem tumulto!.. ……..
Porém um dia as azinheiras perderão as folhas e hão-se chorar como feridas mulheres sem defesa, constrangidas, inibidas.
Até lá, que a presteza do Canto resplandeça no entanto, que as recatadas palavras vozeiem no poema, lá para o lado insubstituível da alma
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14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Prendes num dia o que desligas noutro,
e entre o não e o sim não há meio termo:
o passo dado em frente com desvelo
revolta após por pouco duradouro.
Negas agora mas depois afirmas
e quando afirmas saberás negar:
ponteiro de um relógio que não gira
e quando gira é como se parasse.
Um cão fiel à infidelidade:
um infiel fazendo a guerra santa
com tanta santidade e temperança
que se desdiz ao prosseguir p’ra trás.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quem me dera ser o vento:
tu, nua, receberias
nos teus seios meu alento.
Ou ser rosa:
a cortarias, no teu peito a deporias
como adereço opulento.
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