Mito da Criação – segundo o povo Fulani
30.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Os textos apresentados nesta página foram publicados e copiados do livro "Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro" editado pela Assírio & Alvim com direcção editorial de Manuel Hermínio Monteiro. A música que serve de fundo a estes textos é de autoria de Luís Pedro Fonseca e amavelmente cedida ao Estúdio Raposa.
30.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Fulani, grupo pastoral que habita o oeste da África (Mali)
No princípio existia uma enorme gota de leite.
Então chegou Doondari e criou a pedra.
A pedra criou o ferro;
E o ferro criou o fogo;
E o fogo criou a água;
E a água criou o ar.
Então Doondari desceu pela segunda vez.
Juntou os cinco elementos
E moldou-os num homem,
Mas o homem era orgulhoso.
Então Doondari criou a cegueira e a cegueira derrotou o homem.
Mas quando a cegueira se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou o sono, e o sono derrotou a cegueira;
Mas quando o sono se tornou demasiado orgulhoso,
Doondari criou a preocupação, e a preocupação derrotou o sono;
Mas quando a preocupação se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari criou a morte, e a morte derrotou a preocupação.
Quando a morte se tornou demasiado orgulhosa,
Doondari desceu pela terceira vez.
E ele veio como Gueno, o Eterno,
E Gueno derrotou a morte.
Trad.: Vasco David
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08.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
ORIGEM DO UNIVERSO
Reinavam as trevas sobre o universo. Ocasionalmente, ouviam-se estrondos e ruídos. Certa vez, as cores branca, azul, vermelha e castanha envolveram-se numa espiral e uniram-se num ponto distante e imensurável do qual surgiu uma grande bola de fogo. Esta continuou a rodopiar sobre si até que se condensou numa placenta que se dividiu em dois embriões. O universo começava a agitar-se. Prematuramente, as crianças rasgaram o embrião e morreram, pelo que o universo voltou a contrair-se e a imobilizar-se.
As cores voltaram a juntar-se, repetiu-se o processo, mas, desta vez, as crianças sobreviveram. O universo, que então já respirava, cedo começou a ser disputado por duas crianças; Mukat e Temaiyauit combatiam entre si para decidirem quem era o mais velho e quem teria assim direito a governar sobre as coisas do cosmos. A disputa prometia durar eternamente, mas os dois irmãos acabaram por decidir separar-se e dividir a criação entre si. Porém, Temaiyauit quis levar consigo a terra e os céus, regiões estas que não estavam contempladas no acordo estabelecido. Mukat colocou então um joelho sobre a terra, segurando com uma mão o céu e com a outra as demais criaturas. Deste gesto nasceram os vales, as montanhas, as fendas dos rios e as águas que os enchem. Derrotado, Temaiyauit rasgou a superfície da terra de forma a levar para o mundo crónico os seres que criou. Desde então, a terra tem este aspecto acidentado e irregular.
Trad.: Manuel João Magalhães
Música de Luís Pedro Fonseca
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10.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quando a terra e o céu ainda não eram dois, quando os animais podiam falar como os humanos, um espírito divino chamado Hwan-in, rei dos céus orientais, governava essa parte da terra onde nasce a cada dia a manhã. Nesses tempos áureos moravam ainda cinco monstros nos quatro cantos da terra; o Dragão Azul sobre o Oriente, o Tigre Branco a Ocidente, a Fénix Vermelha no Sul e a Tartaruga e a Serpente no Norte. O rei enviou o seu filho Hwang-ung para Oriente e deu-lhe ordens para que lá construísse um novo reino.
Hwang-ung desceu sobre a terra acompanhado de três Grandes Espíritos Divinos: o Professor, criador das nuvens, o General, condutor dos ventos, e o Governador, gestor das chuvas. Outros três mil espíritos desceram à terra e Hwang-ung fê-los reunir em torno de uma grande árvore que descansava sobre o cume de uma montanha ainda maior. Fundaram aí uma nova nação que Hwang-ung governaria a partir de Shinshi, a cidade celeste que o vira crescer desde tempos imemoriais. Era um rei justo e sensato. A população vivia alegremente e a nação prosperava.
Não muito longe de Shinshi, numa gruta enorme junto a T’aebaek-san, viviam pacificamente um urso e um tigre da Sibéria. Dormitando, uma vez sobre as ervas da montanha, o urso e o tigre conversaram, não sem alguma inveja, sobre a prosperidade da nação de Hwang-ung e da raça humana que aí nascera. «Como desejava ser um homem e um fiel súbdito de Hwang-ung», confessou o urso. O tigre concordou e sugeriu então que se dirigissem ao próprio Hwang-ung e que a ele pedissem conselho. O rei disse-lhes que teria todo o prazer em recebê-los no seu reino, mas disse também que, para se tornarem homens, teriam de sobreviver a uma dura e paciente provação. Deveriam assim comer vinte dentes de alho cada um e com eles sobreviver a cem dias de reclusão no interior da sua gruta. Caso o conseguissem, tornar-se-iam homens com a bênção do rei.
O tigre e o urso aceitaram o desafio, mas sendo animais selvagens, habituados a vaguear livremente pelas montanhas, não tardou que a reclusão se lhes tornasse insuportável.
A sua força de vontade decaía e ao vigésimo dia, o tigre perdeu definitivamente a paciência que o rei lhes aconselhara. O urso ainda pediu ao tigre que se concentrasse no seu objectivo e que esquecesse a fome, mas de nada valeu. Esfomeado, o tigre abandonou a gruta em busca de alimento e é, desde então, o maior inimigo do homem sobre a terra. O urso, por seu turno, esforçou-se por resistir mais do que o seu amigo tigre. Lembrou-se do seu enorme desejo de se tornar humano e pensou para si mesmo que, estando ele habituado a hibernar, a tarefa até não seria tão difícil. Ao centésimo dia, ocorreu uma transformação maravilhosa; à medida que nascia a aurora, uma bela e formosa mulher emergiu da gruta escura e ofereceu-se, nua, ao ar fresco, onde ainda parecia mais bela.
Dirigiu-se aos céus e agradeceu a oferenda, seguindo para Shinshi, onde agradeceria ao rei a sua bênção. Deslumbrado com a sua nua beleza, o rei casou de imediato com Ung-yo, a-mulher-vinda-do-urso. Uniram-se junto à árvore de T’aebaek-san e aí veio à vida uma criança. Senhor das Árvores, a criança Tangun era o deus-homem que completava a divina trindade com Hawn-in, o deus-pai, e Hwang-ung, o espírito. Quando este último abandonou definitivamente a terra, Tangun expandiu o reino, ensinou ao seu povo as leis do deus-pai e tornou-se o primeiro rei da Coreia.
Trad.: Manuel João Magalhães
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22.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
No céu, o deus que reinava sobre a terra, o Rei Gao Xin, tinha um belo cão sarapintado a quem chamava de Pan Gu. O Rei Gao Xin e o seu irmão, o Rei Fang, eram inimigos mortais. Gao Xin prometeu um dia a mão da sua filha a quem lhe trouxesse a cabeça do seu irmão, mas ninguém aceitou o desafio receando o poderoso exército do Rei Fang. Mas Pan Gu, o cão, não se amedrontou e correu em busca do Rei Fang. Este, quando o viu, deu uma gargalhada e disse: «Vejam. Gao Xin está tão próximo do seu fim que até o cão o abandonou.» Certo da vitória, ofereceu nessa noite um gigantesco banquete, sentando-se o cão, convidado de honra, a seu lado. Porém, à meia-noite, quando tudo estava silencioso e Fang dormia embriagado, Pan Gu saltou para a cama do Rei, arrancou-lhe a cabeça e correu de volta para Gao Xin.
O Rei ficou feliz por saber do feito heróico do seu cão e ofereceu um banquete em sua honra. Ordenou que lhe fosse servida carne fresca, mas Pan Gu recusou-se a comer. «Porque não comes tu?», perguntou o Rei: «Será por não oferecer a mão da minha filha a um cão?» Para sua surpresa, Pan Gu falou e disse que bastaria que Gao Xin o cobrisse com o seu sino dourado durante sete dias e sete noites para que se fizesse homem. O Rei assim fez. Porém, pensando que, ao sexto dia, Pan Gu estaria a morrer de fome, a princesa levantou ansiosamente o sino dourado. Uma vez levantado o sino, a magia parou. O corpo de Pan Gu era já o de um homem mas a sua cabeça pertencia ainda ao cão.
Pan Gu casou com a princesa, mas envergonhados de serem assim vistos pelos deuses, vieram morar na terra. Instalaram-se nas montanhas do Sul da China e tiveram três filhos e uma filha que vieram dar início à humanidade.
Trad.: Manuel João Magalhães
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21.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tupis, da Amazónia.
Antigamente, a noite não existia no céu. O dia era eterno. A noite dormia no fundo das águas. E os animais também não existiam, e os objectos falavam.
A filha da Grande Serpente casou com um homem, que tinha três criados fiéis. Ele disse-lhes uma vez: «Afastem-se, porque a minha mulher quer copular comigo.» Mas não era a presença dos criados que incomodava a jovem. Ela não queria fazer amor senão na escuridão. Explicou ao seu marido que o seu pai detinha a noite, e que ele devia enviar os seus criados buscá-la.
Quando estes chegaram, numa piroga, junto da Grande Serpente este deu-lhes uma noz de palmeira tucuman bem fechada, e recomendou-lhes que não a abrissem sob nenhum pretexto. Os criados voltaram a embarcar e, pouco depois, ficaram surpreendidos com um ruído que vinha do interior da noz: ten, ten ten, cri…ten, ten ten, cri, semelhante ao ruído que os grilos e as rãs fazem durante a noite. Um dos criados quis abrir a noz, mas os outros opuseram-se. Depois de muitas discussões, e quando já estavam muito longe da morada da Grande Serpente, reuniram-se finalmente no meio da piroga, fizeram uma pequena fogueira, e fizeram fundir a resina que mantinha a noz fechada.
Mal a noz se abriu, a noite surgiu, e todas as coisas que havia na floresta, se transformaram em quadrúpedes e pássaros, e todas as coisas que havia no rio, transformaram-se em patos e peixes. O cesto transformou-se em jaguar, o pescador e a sua piroga tornaram-se patos: na cabeça do homem surgiu um bico, a piroga tornou-se o corpo, os remos as patas…
A filha da Grande Serpente compreendeu a razão da obscuridade que reinava agora. Quando a estrela da manhã surgiu, a jovem decidiu separar a noite do dia. Para o conseguir, transformou duas bolas de fio nos pássaros curubim e inhambu (que anunciam a aurora). Para punir os criados, transformou-os em macacos.
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20.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Povo Chukchees da América do Norte
Era o princípio dos tempos e da criação. Conhecida pelos seus maus humores, a mulher do Corvo pediu-lhe um dia que criasse a terra, ao que o Corvo protestou dizendo-se incapaz de tal feito. Enfurecida pelo facto de o marido não satisfazer de imediato o seu pedido, a mulher informou-o então que tentaria criar um «companheiro de mau humor» durante o sono e adormeceu. Durante a noite, o Corvo olhou para a sua esposa e notou que o seu abdómen tinha inchado de forma assustadora. Sem qualquer esforço, a mulher criou durante o sono um ser com o qual se uniu de imediato; o Corvo, assustado, virou o rosto e procurou não assistir ao espectáculo.
Na manhã seguinte, a mulher deu à luz dois gémeos, o primeiro casal de que toda a humanidade viria a descender. Envergonhado pela sua impotência criadora, o Corvo, enfurecido, afirmou: «Já criaste os homens, agora terei de criar a terra.» Lançou-se então num alto voo e batendo as asas começou a defecar. As fezes caíram então sobre as águas, incharam e transformaram-se em pedaços de terra que, uma vez juntos, deram origem à Terra. Assim, os homens receberam o lar onde viver.
Trad.: Manuel João Magalhães
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19.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Povo Jugulares da Amazónia
Ainda a terra não existia e uma jovem virgem vivia sozinha no espaço vazio. Chamava-se Coadidop, a Avó dos Dias. Um dia, Coadidop resolveu fazer tabaco a partir do seu corpo; repousou-o sobre o chão, espremeu leite dos seus seios e fê-lo verter sobre o tabaco. Não só era o primeiro charuto do universo como era também a primeira das coisas criadas. Acendeu então o charuto e do fumo resultaram o raio e o trovão. Surgiu ainda a silhueta de um homem, mas desapareceu de imediato. Fumou de novo e a cena repetiu-se. Porém, ao terceiro charuto, o fumo transformou-se por fim num homem. Surpresa, Coadidop disse-lhe: «Es o filho do Trovão, és o Trovão; és o meu neto. Possuirás todos os poderes e farás o que quiseres. Chamar-te-ás Enu, o Trovão.» Acrescentou ainda que Enu, enquanto homem, deveria usar os seus poderes para criar para si uma multitude de companheiros.
Assim, Enu criou um homem do fumo do seu charuto, a quem resolveu chamar de filho e de irmão. Fumou outra vez e surgiram pela sua frente raios e trovões. Fumou uma outra vez e do fumo saíram outros dois homens, seus filhos e irmãos. Os Irmãos Trovão jun-taram-se e disseram à Virgem Avó dos Dias: «Nossa mãe, nossa mãe, nossa tia, faremos o que desejares.» Coadidop respondeu-lhes que, enquanto homens, não poderiam permanecer com ela. Pelo contrário, Coadidop necessitava de mulheres a seu lado. A Virgem acendeu então um charuto e criou a primeira mulher. Chamou-lhe Caiçaro e, insatisfeita com a companhia, acendeu outro charuto e criou uma terceira mulher. Havia agora quatro Trovões para três mulheres. Viviam todos juntos numa casa de pedra suspensa sob o firmamento.
Chegara a altura da primeira menstruação das três Virgens. Os Trovões, que mais não faziam senão fumar charutos e mascar coca, não percebiam a situação e tomavam as virgens por doentes. O Trovão mais novo dirigiu-se à Avó e perguntou-lhe o que fazer, ao que esta respondeu: «Tu és o último; o último de cada geração será sempre o mais sensato. Ensinar-te-ei a fazer um pari onde ficarei reclusa.» Passados alguns dias, as Virgens estavam recuperadas mas quei-xavam-se de fome. A Avó dos Dias disse-lhes que, de então em diante, a sua vida teria de mudar: «Vocês vão trabalhar e não vão ficar como os Trovões. Dar-vos-ei a terra e trabalhá-la-ão para que consigam dela os alimentos de que necessitarem.»
Coadidop pegou então numa corda e enrolou-a à volta da sua cabeça. Retirou depois a corda e pô-la no chão, desenhando assim um circulo sobre o qual lançou leite dos seus seios: nasceu deste gesto a terra. No dia seguinte, a Avó dos Dias ofereceu a terra às duas Virgens e disse: «Agora, trabalhai.» As mulheres desceram à terra mas os Trovões deixaram-se ficar pelo ar; só faziam trovoada.
As Virgens decidiram povoar a terra e os Trovões, invejosos, tentaram criar um quinto Trovão. Queriam engravidar e tt ntaram colocar a sua barriga nas pernas e nos braços. Porém, tal n.-o funcionou e as Virgens gozaram por vários dias com os Trovões, dizendo que eram loucos e feios. Feridos no seu orgulho, os trovões responderam: «Então deixem-nos a nós o trabalho e fiquem vocês com a gravidez.» E assim foi.
Trad.: Manuel João Magalhães
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18.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Povo Karanga do Zimbabwe
O primeiro homem criado por Mwari vivia inicialmente no fundo da terra. O seu nome era Mwetsi. Apesar dos avisos do seu criador, quis viver sobre a terra, que era nesse tempo seca e estéril. Não havia aí ervas, nem arbustos, nem árvores.
Mwetsi começou a lamentar-se da solidão, e Mwari enviou-lhe uma esposa, Estrela da Manhã. Esta mostrou a Mwetsi como fazer fogo. Deitaram-se de cada um dos lados da chama. Ao chegar a noite, Mwetsi introduziu o seu dedo num copo cheio de óleo e ungiu o corpo da Estrela da Manhã. O ventre da mulher inchou-se e, na manhã seguinte, ela concebeu as ervas, os arbustos e as árvores que se expandiram sobre a terra. As árvores cresceram até que as suas copas tocaram no céu. Então, começou a chover. O par viveu em abundância. Mwetsi construiu uma casa, fabricou enxadas e cultivou a terra.
Mas, ao fim de dois anos, Mwari que criar Mwetsi veio procurar Estrela da Manhã e levou-a para a lagoa primordial. Mwetsi lamentou-se durante oito dias e Mwari concedeu-lhe outra esposa, Estrela da Tarde, predizendo-lhe que ela iria levar à sua perda. Com a chegada da noite, Mwetsi deitou-se, como era seu hábito, do outro lado do fogo.
Mas Estrela da Tarde insistiu para que ele dormisse na sua cama. Insistiu também para que lhe afagasse o ventre e os seios com o óleo. Copularam. De madrugada, Estrela da Tarde concebeu galinhas, carneiros e cabras. Na manhã seguinte, foi a vez dos búfalos e antílopes virem à luz. No quarto dia, apareceram os rapazes e raparigas. Nascidos de manhã, os rapazes tornavam-se adultos à tarde. Na tarde do quarto dia, sobreveio uma violenta tempestade.
Estrela da Tarde advertiu o seu marido que corria perigo de morte. No entanto, este quis ainda assim copular com ela, e na manhã seguinte deu à luz leões, leopardos, serpentes e escorpiões. Na tarde do quinto dia, Estrela da Tarde recusou-se a copular com o seu marido; propôs-lhe que copulasse com as filhas, tornadas núbeis. Estas deram à luz filhos que, nascidos de manhã, se tornavam adultos à tarde. Mwetsi tornou-se o rei de um povo numeroso.
Mais tarde, Estrela da Tarde copulou com Serpente e passou a viver com ele. Tornou-se estéril. Mwetsi tentou recuperá-la, mas ela recusou-se a deixá-lo aproximar-se. No momento em que ele se deitou na sua cama, Serpente surgiu e mordeu-o. Mwetsi ficou doente. A chuva deixou de cair, as águas ficaram insalubres e a morte instalou-se entre os homens. Os filhos de Mwetsi estrangularam o seu pai e enterraram-no com Estrela da Tarde. Escolheram outro rei.
Trad.: Manuel João Ramos
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17.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Povo Selk’nam da Terra do Fogo
Chegado à terra depois de percorrer os recantos do universo, Kenos descansou. Na altura, era um ser só e a própria terra não conhecera ainda outra criatura que não Kenos. Olhou em seu redor e notou que toda a terra era um enorme terreno pantanoso. Tomou então um punhado de terra húmida e com ela esculpiu o sexo masculino. Satisfeito com o resultado, tomou de imediato outro pedaço de terra e esculpiu o sexo feminino. Exausto, deixou as suas criações lado a lado para que secassem durante a noite e foi dormir. Durante a noite, as esculturas de areia uniram-se e engendraram qualquer coisa como um ser humano. Este ser cresceu rapidamente e fez-se adulto num só dia. Afastados durante o dia, os dois sexos voltaram a unir-se na noite seguinte e daqui nasceu o segundo homem. Assim foi durante muitos dias; as esculturas de terra húmida separavam-se durante o dia e voltavam a unir-se à noite, trazendo à vida novas criaturas. Chegou uma altura em que a terra estava já povoada de seres humanos e os homens haviam finalmente aprendido a fecundar as mulheres. A partir de então, os seres humanos pareciam não querer outra coisa senão reproduzir-se e a terra cedo ficou sobrepovoada. Então, Kenos, o Pai do homem, resolveu intervir. Inquietado com a situação, o criador perguntava-se o que fazer. Surgiram-lhe apenas duas opções. Ou privava os seres humanos do poder da auto procriação ou teria de arranjar forma de lhes dar um espaço maior. Decidiu então usar as suas forças para erguer o céu que pesava sobre a terra. Assim fez e é a Kenos que os homens devem o espaço que hoje têm para se mover e a liberdade de procriar.
Trad.: Manuel João Magalhães
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16.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
América do Norte – Iroqueses
(Mito da criação)
No início não existia terra para se viver, mas lá em cima, no grande azul, habitava uma mulher sonhadora. Uma noite sonhou com uma árvore coberta de rebentos brancos, que iluminava o céu quando as suas flores se abriam, mas que trazia uma terrível escuridão quando elas se voltavam a fechar. O sonho assustou-a, de modo que foi ter com os sábios homens velhos que viviam com ela, na sua aldeia no céu, e contou-lhes.
«Puxem esta árvore mais para cima», implorou-lhes, mas eles não entendiam. Tudo o que faziam era escavar à volta das raízes, tentando arranjar espaço para haver mais luz. Então a árvore caiu no buraco que eles fizeram e desapareceu. Depois disso, deixou de haver luz, apenas escuridão.
Os homens velhos começaram a ter medo das mulheres e dos seus sonhos. Era dela a culpa da luz se ter ido para sempre.
Então puxaram-na até ao buraco e empurraram-na. Sentiu-se a cair, para o fundo, em direcção ao grande vazio. Debaixo dela não existia nada para além de uma terrível quantidade de água. Esta estranha mulher sonhadora do grande azul, certamente teria ficado desfeita em mil bocados, não fosse um peixe-águia que veio em seu socorro. As suas penas formaram uma almofada que permitiu à mulher uma aterragem suave por cima das ondas.
Entretanto, o peixe-águia não conseguia sozinho mantê-la. Ele precisava de ajuda. Chamou pelas criaturas das profundidades. «Temos que encontrar alguma coisa sólida onde esta mulher possa descansar», disse ansiosamente. Só que não existia nenhum pedaço sólido, apenas as águas tormentosas e sem fim.
Um mergulhão desceu na água, para baixo, até ao fundo do mar e trouxe de lá um pouco de lama no seu bico. Encontrou uma tartaruga, espalhou a lama no seu casco e mergulhou outra vez para trazer mais lama.
Então os patos juntaram-se-lhe. Eles gostavam de se sujar com lama e portanto ajudaram a trazer mais alguma nos seus bicos, espalhando-a por cima da tartaruga. Os castores também ajudaram – eles eram grandes construtores – e trabalharam muito, tornando a carapaça da tartaruga cada vez maior.
Agora toda a gente estava muito ocupada e entusiasmada. Este mundo que eles estavam a construir começava a ficar enorme! Os pássaros e os animais apressavam-se, construindo países, continentes, até que por fim tinham construído toda a terra. Durante todo esse tempo, a mulher do céu esteve sempre calmamente sentada nas costas da tartaruga.
Ela ainda aguenta a terra até hoje.
Trad.: Vasco David
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15.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Canadá – Povo Snuqualmi
Quando a terra era ainda jovem e com poucas plantas, não existia nem sol nem lua: reinava um claro-escuro eterno, e os homens e animais falavam a mesma língua. Duas mulheres, ocupadas a extrair do solo raízes comestíveis, discutiram certa vez para decidir se era melhor casar com pescadores ou com caçadores, e se as raízes que colhiam ficariam mais apetitosas com carne ou com peixe. Finalmente, desejaram casar com estrelas. Assim fizeram; mudaram-se para o céu com os seus novos maridos; estes traziam-lhes muita caça.
O mundo celeste assemelhava-se à terra, excepto no facto de o vento, a tempestade e a chuva serem aí desconhecidos. Os homens-estrelas permitiram às suas esposas continuar a extrair raízes com a condição de elas não cavarem muito fundo. A mais velha deu à luz um filho a que chamou Lua. Como as duas mulheres se aborreciam, decidiram violar a interdição e fizeram um buraco no manto celeste: o vento entrou no mundo celeste pelo orifício, e elas viram a sua terra natal em baixo.
As mulheres confeccionaram uma longa escada de corda e fugiram. Quando chegaram à aldeia, os aldeãos saudaram-nas, e todos
quiseram ir ver a escada celeste. Por brincadeira, fizeram um baloiço monumental que oscilava de uma montanha a outra, do norte ao sul, e do sul ao norte. Arrastando-se pelo chão, a extremidade da escada cavou as ravinas que existem hoje.
No meio da festa, a mulher que tinha tido o filho confiou-o à guarda de um sapo fêmea velha e cega. Mas as mulheres-salmão raptaram-no. Quando os aldeãos se aperceberam do rapto, deixaram imediatamente a brincadeira do baloiço para procurarem a criança. O rato ficou sozinho junto ao baloiço; roeu a corda e o baloiço caiu, formando um grande rochedo, que ainda hoje existe no vale do rio Snuqualmi.
Depois de diversas tentativas, o gaio-azul conseguiu voar sobre uma enorme muralha, cortada horizontalmente em dois, e cujas metades quase batiam uma na outra; esta muralha impedia o acesso à terra dos mortos, onde vivia a criança Lua, que entretanto tinha crescido. Lua prometeu regressar para junto dos seus; tornou-se célebre devido aos prodígios que realizava, tais como a criação de rios e de montanhas, a diferenciação dos animais, a invenção do fogo, a destruição dos monstros… Por fim, tornou-se na lua.
Trad.: Manuel João Ramos
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14.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Nos primeiros tempos, não havia na terra senão uma única mulher, que vivia completamente só. Fez um marido a partir de um bloco de resina; mas, como nessa altura o sol era muito mais quente que actualmente, o homem acabou por fundir-se.
Por isso, os seus filhos odiavam o sol; um deles atirou uma flecha que se cravou no céu, e depois atirou um grande número de flechas que se encravavam umas nas outras, e com as quais construiu uma grande escada, que ele e os seus irmãos subiram até chegarem ao mundo celeste, o qual tinha o aspecto de uma grande pradaria.
Alguns gansos, que nessa altura ainda falavam, indicaram-lhes o caminho da morada do sol. Encontraram depois duas mulheres cegas. Um dos jovens roubou-lhes comida quando uma delas a estendia à outra. Perguntaram-lhes pela morada do sol; elas indicaram-lhes o caminho a seguir e deram-lhes um pequeno cesto contendo seis bagas silvestres.
Os irmãos chegaram à morada do sol, que era um velho que amontoava madeira resinosa num enorme braseiro – tão ardente que os jovens julgaram morrer, e de onde emanava o calor intenso que reinava então na terra.
Deram ao sol as seis bagas, que as comeu; estas multiplicaram-se no seu corpo de tal modo que o velho morreu. A violência do fogo começou a diminuir e, desde então, já não há tanto calor na terra.
Trad.: Manuel João Ramos
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13.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Nova Guiné. Baruya
No princípio, Sol e Lua confundiam-se com a Terra. Tudo era pardo e cinzento. Homens, espíritos, animais e plantas viviam juntos e falavam a mesma língua. Mas os homens não eram como hoje os conhecemos; o pénis do homem não tinha qualquer orifício e a vagina da mulher estava completamente fechada.
Certa vez, Sol e Lua decidiram afastar-se da Terra e tomarem o céu como lar. Olhando os homens lá do alto, Sol decidiu que havia alguma coisa a fazer pelo ser humano. Combinou então com Lua que, enquanto estivesse no céu, esta teria de descer à Terra. Quando Sol desejasse repousar, Lua tomaria o seu lugar e governaria os céus. Conseguiram assim alternar o dia e a noite, a chuva e o calor e pouco tardou para que criassem as estações. Na Terra, os animais separaram-se dos humanos para irem viver na floresta e com eles levaram os espíritos que, para sempre, se tornariam inimigos do homem. A língua comum desapareceu e não mais os homens comunicaram com os animais, excepto com os cães.
Sempre observador e perspicaz, Sol apercebeu-se então que o homem e a mulher ainda se encontravam desprovidos de quaisquer orifícios: não poderiam multiplicar-se e construir uma sociedade suficientemente grande para que pudessem sobreviver sem a ajudados espíritos e dos animais. Lançou então uma pedra, «como a lua», sobre uma fogueira. A pedra explodiu e as lascas acabaram por perfurar o homem e a mulher que agora podiam copular e reproduzir-se. Os primeiros Baruya obedeceram assim à vontade de Sol, multiplicando-se e povoando a Terra. Ainda por perfurar, não tardou para que os cães começassem a dizer mal dos homens. Enfurecidos, os Baruya organizaram-se, perseguiram os cães e alvejaram-nos com flechas que acabaram por lhes perfurar o sexo. Desde então, os cães deixaram de falar e hoje apenas uivam à Lua.
Trad.: Manuel João Magalhães
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12.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
(América do Norte – Povo Diguenhos)
Quando Tu-chai-pai criou o mundo, a terra era a mulher e o céu o homem. Um dia, tomado pelo desejo, o céu desceu sobre a terra e não mais quis voltar. Sentados junto ao lago que era a terra, Tu-chai-pai e o seu irmão sentiam-se a sufocar com o peso do céu que lhes caía sobre a cabeça. «E agora, o que fazemos?», perguntou o demiurgo. «Não faço ideia», respondeu de imediato o irmão. «Vamos dar um passeio», sugeriu Tu-chai-pai.
Passearam por uns momentos e sentaram-se a descansar. «E agora, que fazemos nós?», perguntou de novo o Criador. O seu irmão voltou a responder que não sabia. Então Tu-chai-pai sussurrou a palavra mágica we-hicht por três vezes, pegou em tabaco, enrolou-o e fumou três vezes. A cada trago de fumo, o céu erguia-se sobre as suas cabeças. O irmão também fumou e o céu distanciava-se cada vez mais. Quando fumaram juntos, mandaram o céu para tão longe que este tomou a forma côncava que hoje se lhe conhece.
De seguida, os irmãos resolveram colocar Norte, Sul, Levante e Poente nos seus respectivos pousos e desenharam sobre a terra duas linhas perpendiculares. Tu-chai-pai explicou então ao seu irmão que viriam de cada um destes pontos três ou quatro homens e disse-lhe que era hora de partir e criar rios, vales e montanhas. «Mas porque te dás tu a todo este trabalho?», perguntou o irmão ao Criador. Tu-chai-pai explicou então que, quando chegassem os homens, estes procurariam em vão comida e água bebível; o oceano estava já feito, mas faltavam ainda os rios. Foi depois fazer as florestas e o irmão voltou a perguntar: «Mas que fazes tu, grande tolo?» Infinitamente paciente, Tu-chai-pai respondeu que não tardaria que os homens sentissem frio e que era necessário criar algo que os pudesse aquecer.
Tu-chai-pai voltou a perguntar: «E o que fazemos agora?» O irmão voltou a responder que não sabia e que estava já a ficar cansado da Criação. O demiurgo disse-lhe então que era já hora de fazerem o homem. Tomou um pouco de lama nas mãos e fez os primeiros homens, os índios. De seguida, fez os Mexicanos. Foi fácil fazer o homem mas, quando chegou à altura de desenhar a mulher, Tu-chai-pai achou que deveria empenhar-se um pouco mais; demorou mais tempo a moldar a mulher do que a erguer os vales e as montanhas do mundo. Ordenou aos homens que viajassem para o Levante, de onde nascia, pela primeira vez, o sol. Os índios procuraram luz e, quando a encontraram, ficaram tão felizes e emocionados com a sua beleza que prometeram prestar culto a Tu-chai-pai por tão maravilhosa criação. O demiurgo avisou o seu irmão de que o sol não poderia ficar só e que era já hora de criar a lua. Esta, avisou, deveria partilhar o céu com o sol mas morreria regularmente. Quando a lua começasse a decrescer e a decrescer, os homens deveriam fazer corridas para tentar manter a lua viva. Os homens cumpriram a sua parte e os irmãos criadores, cansados de tanto trabalho, não voltaram a criar nada. Hoje, mais não fazem do que fumar tabaco enquanto se divertem com as mesquinhices do homem.
Trad.: Manuel João Magalhães
(As “gralhas” na leitura não foram corrigidas)
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