Nota biográfica

Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de Maio de 1890 — Paris, 26 de Abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.

Mário de Sá-Carneiro – “Crise Lamentável”

13.10.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe…
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.

Viver em casa como toda a gente.
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.

Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.

Ter força num dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai:
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.

Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir prà rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a “frousse” das correntes de ar.

Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento.

Que tudo em mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o Oiro em chumbo se derrete
Por meu Azar ou minha Zoina suada…

Paris-janeiro 1916


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Mário de Sá Carneiro – “Álcool”

15.09.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

pesadelo

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d’auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo –
Luto, estrebucho… Em vão! Silvo pra além…

Corro em volta de mim sem me encontrar…
Tudo oscila e se abate como espuma…
Um disco de ouro surge a voltear…
Fecho os meus olhos com pavor da bruma…

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d’inferno em vez de paraíso?…
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.

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Mário de Sá-Carneiro – “FIM”

13.04.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

burrro13

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes –
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro…

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Mário de Sá-Carneiro – “O Recreio”

30.01.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

balouco13

Na minh’Alma há um balouço

Que está sempre a balouçar

Balouço à beira dum poço,

Bem difícil de montar…

– E um menino de bibe

Sobre ele sempre a brincar…


Se a corda se parte um dia,

(E já vai estando esgarçada), 

Era uma vez a folia: 

Morre a criança afogada…

– Cá por mim não mudo a corda,

Seria grande estopada…

Se o indez morre, deixá-lo… 

Mais vale morrer de bibe 

Que de casaca… Deixá-lo

Balouçar-se enquanto vive…

– Mudar a corda era fácil…

Tal ideia nunca tive…

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Mário de Sá-Carneiro – “Cinco horas”

07.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Minha mesa no Café,

Quero-lhe tanto… A garrida

Toda de pedra brunida 

Que linda e que fresca é!

Um sifão verde no meio 

E, ao seu lado, a fosforeira

Diante ao meu copo cheio

Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores

Que acho pouco ornamentais: 

Os xaropes têm cores

Mais vivas e mais brutais).

Sobre ela posso escrever 

Os meus versos prateados, 

Com estranheza dos criados

Que me olham sem perceber..

Sobre ela descanso os braços 

Numa atitude alheada,

Buscando pelo ar os traços 

Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,

— Pois há um ano que fumo
-
Imaginário presumo

Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente

Uma linda mulher brilha,

O fumo da cigarrilha

Vai beijá-la, claramente…).

Um novo freguês que entra

E novo actor no tablado, 

Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca

Que ao fundo descubro, triste,

Na minha ideia persiste 

E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades

A minha recordação,
E destes vislumbres são

As minhas maiores saudades…

(Que história d’Oiro tão bela

Na minha vida abortou:

Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou…).

Nos Cafés espero a vida

Que nunca vem ter comigo:

— Não me faz nenhum castigo,

Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito, 

Ideal que só me resta: 

Pra mim não há melhor festa, 

Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,

Sois hoje — que galardão!
— 
Todo o meu campo de acção

E toda a minha cobiça.

Paris – Setembro 1915

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Mário de Sá-Carneiro – “Como eu não possuo”

04.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Olho em volta de mim. Todos possuem -

Um afecto, um sorriso ou um abraço. 

Só para mim as ânsias se diluem

E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria 

Dos espasmos golfados ruivamente; 

São êxtases da cor que eu fremiria,

Mas a minh’alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei… perco-me todo…

Não posso afeiçoar-me nem ser eu: 

Falta-me egoísmo pra ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir 

Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,

E eu não logro nunca possuir!…

Castrado d’alma e sem saber fixar-me, 

Tarde a tarde na minha dor me afundo… 

– Serei um emigrado doutro mundo

Que nem na minha dor posso encontrar-me?.

Como eu desejo a que ali vai na rua,

Tão ágil, tão agreste, tão de amor… 

Como eu quisera emaranhá-la nua,

Bebê-la em espasmos d’harmonia e cor!…

Desejo errado… Se a tivera um dia, 

Toda sem véus, a carne estilizada

Sob o meu corpo arfando transbordada, 

Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria.



Eu vibraria só agonizante 

Sobre o seu corpo d’êxtases dourados, 

Se fosse aqueles seios transtornados, 

Se fosse aquele sexo aglutinante…

De embate ao meu amor todo me ruo,

E vejo-me em destroço até vencendo: 

E que eu teria só, sentindo e sendo 

Aquilo que estrebucho e não possuo.

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Mário de Sá-Carneiro – “Serradura” (sem música)

28.08.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

A minha vida sentou-se 

E não há quem a levante, 

Que desde o Poente ao Levante 

A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está, 

Estendida, a perna traçada,

No infindável sofá 

Da minha Alma estofada.

Pois é assim; a minhAlma 

Outrora a sonhar de Rússias, 

Espapaçou-se de calma,

E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock, 

Lê o “Matin” de castigo, 

E não há nenhum remoque 

Que a regresse ao Oiro antigo!

Dentro de mim é um fardo 

Que não pesa, mas que maça: 

O zumbido dum moscardo, 

Ou comichão que não passa.

Folhetim da “Capital” 

Pelo nosso Júlio Dantas -

Ou qualquer coisa entre tantas 

Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho, 

Coisa que nunca fazia,

E fuma o seu cigarrinho 

Em plena burocracia!…

Qualquer dia, pela certa, 

Quando eu mal me precate, 

É capaz dum disparate, 

Se encontra uma porta aberta…

Isto assim não pode ser…

Mas como achar um remédio? 

– Pra acabar este intermédio 

Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil – partindo 

Os móveis do meu hotel, 

Ou para a rua saindo 

De barrete de papel

A gritar: “viva a Alemanha”…

Mas a minhAlma, em verdade, 

Não merece tal façanha, 

Tal prova de lealdade.

Vou deixá-la – decidido 

-No lavabo dum Café,

Como um anel esquecido. 

É um fim mais raffiné.

Paris – setembro 1915

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Mário de Sá-Carneiro – “Como eu não possuo”

02.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Olho em volta de mim. Todos possuem –

Um afecto, um sorriso ou um abraço.

Só para mim as ânsias se diluem

E não possuo mesmo quando enlaço.

Roça por mim, em longe, a teoria 

Dos espasmos golfados ruivamente;

São êxtases da cor que eu fremiria,

Mas a minh’alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei… perco-me todo… 

Não posso afeiçoar-me nem ser eu: 

Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, 

Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser 

Forçoso me era antes possuir 

Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,

E eu não logro nunca possuir!…

Castrado d’alma e sem saber fixar-me, 

Tarde a tarde na minha dor me afundo… 

– Serei um emigrado doutro mundo

Que nem na minha dor posso encontrar-me?.

Como eu desejo a que ali vai na rua, 

Tão ágil, tão agreste, tão de amor…

Como eu quisera emaranhá-la nua, 

Bebê-la em espasmos d’harmonia e cor!…

Desejo errado… Se a tivera um dia, 

Toda sem véus, a carne estilizada 

Sob o meu corpo arfando transbordada, 

Nem mesmo assim – ó ânsia! – eu a teria.



Eu vibraria só agonizante 

Sobre o seu corpo d’êxtases dourados,

Se fosse aqueles seios transtornados,

Se fosse aquele sexo aglutinante…

De embate ao meu amor todo me ruo,

E vejo-me em destroço até vencendo: 

E que eu teria só, sentindo e sendo

Aquilo que estrebucho e não possuo.

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Mário de Sá-Carneiro – “Quási”

28.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

sol

Um pouco mais de sol – eu era brasa,

Um pouco mais de azul – eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído

Num grande mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim – quase a expansão…

Mas na minh’alma tudo se derrama…

Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo … e tudo errou…

— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim…

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que, desbaratei…

Templos aonde nunca pus um altar…

Rios que perdi sem os levar ao mar…

Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…

Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí…

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol — e fora brasa,

Um pouco mais de azul — e fora além.

Para atingir faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

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Mário de Sá Carneiro – “Caranguejola”

17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!…
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado…
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira…
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P’ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar…
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p’ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!…

Noite sempre p’lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho – que amor!…
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
P’lo menos era o sossego completo… História! Era a melhor das vidas…

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P’ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito…

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza…

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará
P’ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C’o a breca! levem-me p’rá enfermaria –
Isto é: p’ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital – higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda…
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo…

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras.
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

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