Nota biográfica

Sofia de Melo Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004) foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999.

“Piratas”, poema de Sophia de Mello B. Andresen.

13.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

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“Há cidade acesas”, de Sophia de Mello B. Andresen

13.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.

Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.

E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.

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“Jardim Perdido” de Sophia de Mello B. Andresen

24.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe.
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das árvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava.
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidade e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.

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“A paz sem vencedor nem vencido”, de Sophia de Mello B. Andresen.

16.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Que o tempo que nos deste seja um novo

Recomeço de esperança e de justiça

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência

Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento

Para que venha a nós o vosso reino

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos

Dai-nos a paz que nasce da verdade

Dai-nos a paz que nasce da justiça

Dai-nos a paz chamada liberdade

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

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“O Jardim”, poema de Sophia de Mello B. Andresen.

28.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

O jardim está brilhante e florido,
Sobre as ervas, entre as folhagens,
O vento passa, sonhador e distraído.
Peregrino de mil romagens.

É Maio ácido e multicolor,
Devorado pelo próprio ardor,
Que nesta clara tarde de cristal
Avança pelos caminhos
Até os fantásticos desalinhos
Do meu bem e do meu mal.

E no seu bailado levada
Pelo jardim deliro e divago,
Ora espreitando debruçada
Os jardins do fundo do lago,
Ora perdendo o meu olhar
Na indizível verdura
Das folhas novas e tenras
Onde eu queria saciar
A minha longa sede de frescura.

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“Nestes Últimos Tempos”de Sophia de Mello B. Andresen.

29.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo —  de seu
Viscoso gozo da nata da vida — que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos da sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?

(Julho de 1976 – Edição “o nome das coisas”-caminho 2004)

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Sophia de Mello B. Andresen – “Porque”

16.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

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Sophia de Mello B. Andresen – “O Auriga”

31.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

auriga13

A nudez dos pés que o escultor modelou com amor e minúcia
Mostra a pura nudez do teu estar na terra
A longa túnica em seu recto cair diz o austero
Aprumo de prumo da tua juventude
O pulso fino a concisa mão divina dizem
O pensamento rápido e subtil como Athena
E a vontade sensível e serena:
A ti mesmo te guias como a teus cavalos

Os beiços de seiva inchados como fruto
Dizem o teu amor da vida extasiado e grave
E sob as pestanas de bronze nos olhos de esmalte e de ónix
Fita-nos a tua paixão tranquila
O teu projecto
De em ti mesmo celebrares a ordem natural do divino
O número imanente

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Sophia de Mello B. Andresen – “Pátria”

28.01.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

patria13

Por um país de pedra e vento duro Por um
país de luz perfeita e clara Pelo negro da
terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência Que a
miséria longamente desenhou Rente aos ossos
com toda a exactidão Dum longo relatório
irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas Palavras
sempre ditas com paixão Pela cor e pelo peso
das palavras Pelo concreto silêncio limpo das
palavras Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo

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Sophia de Mello B. Andresen – “Com fúria e raiva”

03.07.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

assembleia

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “O Nome das Coisas”

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Sofia de Mello B. Andresen – “Catarina Eufémia”

30.06.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

catarina

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça E eu
penso nesse instante em que ficaste exposta Estavas
grávida porém não recuaste Porque a tua lição é esta:
fazer frente

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea Eras
a inocência frontal que não recua Antígona poisou a sua mão
sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da Justiça continua

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Sophia de Mello B. Andresen – “Camões e a Tença”

21.05.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Irás ao Paço. Irás pedir que a tença Seja

paga na data combinada Este país te mata 

lentamente País que tu chamaste e não

responde País que tu nomeias e não nasce

Em tua perdição se conjuraram Calúnias 

desamor inveja ardente E sempre os

inimigos sobejaram A quem ousou seu ser 

inteiramente

E aqueles que invocaste não te viram 

Porque estavam curvados e dobrados

Pela paciência cuja mão de cinza Tinha 

apagado os olhos no seu rosto

Irás ao Paço irás pacientemente

Pois não te pedem canto mas paciência

Este país te mata lentamente

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Sofia de Mello B. e Andresen – “Para atravessar…”

02.12.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo Ao
lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo Minha
rápida noite meu silêncio Minha pérola
redonda e seu oriente Meu espelho minha
vida minha imagem E abandonei os jardins
do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua E
ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste E
aprendi a viver em pleno vento

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Sofia de Mello B. Andresen – ” Noturno da Graça”.

25.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há um rumor de bosque no pequeno jardim

Um rumor de bosque no canto dos cedros

Sob o íman azul da lua cheia

O rio cheio de escamas brilha.

Negra cheia de luzes brilha a cidade alheia.

Brilha a cidade dos anúncios luminosos 

Com espiritismo bares cinemas Com 

torvas janelas e seus torvos gozos

Brilha a cidade alheia.

Com seus bairros de becos e de escadas De 

candeeiros tristes e nostálgicas Mulheres 

lavando a loiça em frente das janelas Ruas 

densas de gritos abafados Castanholas de passos

pelas esquinas Viragens chiadas dos carros

Vultos atrás das cortinas Ciclopes alucinados.

De igreja em igreja batem a hora os sinos

E uma paz de convento ali perdura

Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas

Com sua noite trémula de velas

Cheia de aventurança e de sossego.

Mas a cidade alheia brilha Numa 

noite insone De luzes fluorescentes

Numa noite cega surda presa Onde
soluça uma queixa cortada.

Sozinha estou contra a cidade alheia.

Comigo

Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua

Límpido e aceso

O silêncio dos astros continua.

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Sofia de Mello B. Andresen – “Quando”

17.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

panteao

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta 

Continuará o jardim, o céu e o mar, E como hoje 

igualmente hão-de bailar As quatro estações à 

minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar Em

que eu tantas vezes passei, Haverá 

longos poentes sobre o mar, Outros 

amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa, 

Será o mesmo jardim à minha porta, E 

os cabelos doirados da floresta, Como 

se eu não estivesse morta.

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Sophia de Mello Breyner e Andresen – “Um dia”

17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

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Sophia de Mello B. e Andresen – “Pátria”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

– Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.

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