Nota biográfica

Poeta e jornalista cabo-verdiano, Daniel Damásio Ascensão Filipe nasceu em 1925, na Ilha da Boavista, em Cabo Verde e morreu em 1964, em Lisboa. Na poesia destacou-se pela combatividade revolucionária, aliada a uma fina sensibilidade lírica que o levou à prisão e tortura no regime salazarista.


“Morna”, poema de Daniel Filipe.

03.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.

os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.

(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta.)

E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.

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“Romance de Tomazinho Cara-Feia”, poema de Daniel Filipe.

23.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.

— E nunca mais voltará

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“Auto-procura”, poema de Daniel Filipe.

08.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

O meu Eu, deixei-o abandonado

P’los caminhos da Dor e da Ilusão. 

Sou um cego, sem guia nem bordão… 

Um farrapo aos ventos atirado.

Todos os sonhos bons que hei sonhado 

Queimaram-se na chama da Paixão…

E onde havia, outrora, um coração

Há um abismo sem fundo de pecado.

Entre o que fui e o que sou, a cada instante,

Há em mim uma luta fatigante

Que a minha alma gasta não suporta…

Na ânsia de encontrar-ME (vão intento!),

Meus dias vou gastando, num tormento,

A procurar de MIM, de porta em porta!… 


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