Manuel Gusmão – “Havia Séculos”
21.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Manuel Gusmão (Évora, 1945) é um poeta, ensaísta, tradutor e professor universitário, português. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa, onde, agora, é professor, desenvolvendo trabalho nas áreas da Literatura Portuguesa, Literatura Francesa e Teoria da Literatura.
21.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do vento
folheando a memória da terra
essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores;
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens
o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos
Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.
Havia séculos
e / atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa rosa alucinada / havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.
A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos
sem paz e sem lei, sem amos nem destino.
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21.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
O espelho está lá mas ninguém lá está
É uma cena deserta. O piano e a estante de música
estão vazios; são contornos da sombra
Do lado direito de quem olha daqui, há
uma ampla porta-janela que dava para
uma varanda que daria para uma selva imaginada.
A música que ouves não vem desta sala
Nasce e vem do maciço de árvores escuras
que brilham mais no escuro da noite ultramarina.
Vem do mar que está depois da selva que
está a seguir às árvores de um parque
que é uma memória de pedra que já começou a ruir.
É uma música poderosa mas lenta; feroz e densa
e voraz; selvagem mas não primitiva.
Nos arredores do império, num condomínio
colonial antigo e novíssimo, podes pela música
que sem resgate os dissolveu imaginá-los. Fora
pouco antes de desaparecerem
Eram já extremos conspiradores sem conspiração,
de si mesmo exilados, perdida a juventude,
perdidos dessa selva em que teriam sido feras
e fora já a sua própria memória. A maturidade
apodreceu-nos como uma floresta que se desfaz
na água nostálgica do desejo. A música
essa música num espelho longe foi o que sobrou
fala de um crime passional em que ninguém afinal
morreu, de um segredo partilhado e sem sentido
que ouves uma vez mais nessa voz abafada ou
rouca – como se diz? – nessa voz que te transporta
a essa cena deserta onde nunca terás estado.
No espelho longe num oriente extremo não podes ver-te:
não é a tua história; não é a história de ninguém. Mas
podes ver a música que através deles te envenena o sangue.
(Migrações do Fogo)
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