Vitorino Nemésio – “O Futuro Perfeito.”
03.02.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Vitorino Nemésio foi ficcionista, poeta, cronista, ensaísta, biógrafo, historiador da literatura e da cultura, jornalista, investigador, epistológrafo, filólogo e comunicador televisivo, para além de toda a actividade de docência. Graças ao programa televisivo “Se bem me lembro…” tornou-se uma figura muito popular.
03.02.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
A neta explora-me os dentes, Penteia-me
como quem carda. Terra da sua
experiência, Meu rosto diverte-a,
parda Imagem dada à inocência.
Finjo que lhe como os dedos, Fura-
me os olhos cansados, íntima aos
meus próprios medos Deixa-mos
sossegados.
E tira, tira puxando Coisas de mim,
divertida. Assim me vai
transformando Em tempo de sua
vida.
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13.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Deixem-me ouvir no búzio velho,
Que me ofereceram por escárnio,
O grito da ave que no espelho Do
longo mar partiu a asa: E meu
coração — descarne-o Seu bico
ardente como uma brasa.
Deixem-me ouvir nesse antigo
Búzio de sala (que agora Os
sobrados são o mar) As vozes que
ele traz consigo Como o relógio dá a
hora Sem a gente lhe tocar.
Búzio ridículo, malhado, Casa onde
nunca entro, Assim torcido,
conservado Com frio e barulho
dentro: Se me falasses em voz alta
Todos ouviam o que eu ouço
Quando uma simples areia salta No
bafo estreito do teu poço, Búzio
velho, Meu começo e meu destroço.
Já que ninguém te aproveita,
Búzio de bicho comido,
Sejas meu
Aqui e em todo o lugar
Onde a minha mão te deita
Com o que soube e esqueceu,
Como um pouco de céu velho,
Búzio relho,
Minha boca e meu ouvido.
Ai!
Esta canção do búzio desusado,
Como a posso acabar dentro de mim,
Se eu sou o bicho dele despegado?
Talvez só cante lá para o fim,
Como o cisne agoniado…
Antes mais tarde, antes assim!
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17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.
Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.
Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado
Só esse pobre me pareceu Cristo.
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17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim … o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
… Mas … diz-me a ordenança …
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens…
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
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17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei a de mim com paciência:
Fechada de marés, a sonhos e a lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhadosa de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta pelo vento, as salas frias.
A minha casa… Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
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