Nota biográfica

Gastão Santana Franco da Cruz (Faro, 20 de Julho de 1941) é um poeta, crítico literário e encenador português. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi professor do ensino secundário e leitor de Português no King's College. Como poeta, o seu nome aparece inicialmente ligado à publicação colectiva Poesia 61

“Ofício”, poema de Gastão Cruz.

03.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe


Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe


Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.


– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

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“Relatório em forma fechada” de Gastão Cruz.

15.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera
desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água
de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas
da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam


– Gastão Cruz, em “A moeda do tempo”.
Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

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Gastão Cruz – “A roupa envolve-nos”

22.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A roupa envolve-nos
a paragem do mar cresce contigo
a língua e o sentido tudo anda
tão ocupado tão cansado e destruído
que a roupa em
torno morre como um foco de ruído

O movimento cerca esta mudez
o mar desidratado é o abismo
onde revives
Viste os vales instáveis do mar
mas para que é perguntar senão que se fez de ti
O fogo sob as vozes que não ouves
A língua vive ainda?

Inscrevo na memória tumefacta
mais uma imagem
Esses corpos nascem
O que posso dizer para cobri-los?
Ouves? Está comigo
a mortalidade da tua vida

Como falar contigo? Mas o som
produzido era tanto
que as cordas se formavam com a sua saída
retomavam a forma destruída
enquanto
tudo o que te dizia dividia
um som tempestuoso

Na ocasião da queda
desses algum
olha as áreas correspondentes no mar
volta transforma-se
é um sinal de
contradição
e sob a chuva contínua de relâmpagos revive

Porém o som inibe-te prossegues
sem segurança o canto a turva cítara
vence-te não o canto repetido
Essas cordas do peito já distensas

submetem-se ao silêncio poderias
escolhê-las porém sempre repetes
os nomes desses corpos a mudez
intimida-te assim a poesia

nasce com o rumor dos próprios corpos
com o bater dos nomes entre os ombros
tão dóceis mar de músculos

mudos
o coração do corpo
repetindo os nomes turvos

Como é possível termos esquecido a linguagem?
Comparámos os corpos Se os descrevo
agora que deixámos de falar
esqueço a igualdade e nela cessa
a possibilidade de falar

É um erro a cidade alguma vez a
cantaste?
Mas já não é possível a verdade é que
definitivamente nela morres
Por isso escolherás o teu estilo
de novo por palavras errarás

Na praia exterminada não pudemos
cantar a liberdade
sobre o teu corpo correm turvas asas
de entre as pedras
levantas a cabeça enquanto cais

Depois a roupa gera e espalha a escuridão
cada corpo isolado se transforma
sob as asas que
o cobrem

Desencontramo-nos
a terra recomeça a deter-te
preciso de dizer
esse teu nome
Mas não ouças a minha fala transformada

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