“No obscuro desejo”, poema de Vasco Graça Moura.
08.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
08.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
No obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção
que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,
e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar
a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.
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15.05.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
na praia lá do guincho as velas
de windsurf saltam sobre as ondas
e o meu olhar, equestre,
pula nos peitos das banhistas, enquanto
um cachorro tenta agarrar a cauda.
nos feriados tudo é insuportável
menos o sol e o mar
apesar das famílias,
e sustendo as gaivotas na mais alta
imaginação, porque hoje não vi nenhuma,
o vento traz de tudo
de antónio nobre a lorca às pandas roupas
que modelam os corpos em míticas figuras
com o seu drapejado esvoaçante,
entre dunas e lixo e vendedores de gelados.
restaria o campo, mas
«no campo não há bicas nem paperbacks»
diz uma amiga minha e tem razão,
que seria de nós, bucólicos, sem esses
indicadores da alma? dou
lume a uma italiana e enquanto
ela agradece ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale; faz-me lembrar o algarve, mas no verão
o algarve é a continuação
da política por outros meios, antes
a rudeza atlântica do guincho, antes
a nortada, os surfistas
na crista da onda, a areia que entra no poema,
e o regresso mais cedo, quando já não se
aguenta.
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20.04.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
não são muitos, são muito poucos, os poetas
que inventam a poesia portuguesa
como radical abalo do mundo, ou metáfora
a estremecer que o refigura, ou como
crispação do destino e subversão,
no risco visceral da sua própria vida.
Assim, e porque toda a liberdade reenvia
ao necessário exílio, eles atrevem-se
a atravessar sem rede o vão por sobre o abismo:
prendem-se a quanto é neles explosão, remorso,
erros, desequilíbrios, amores, visões, enganos,
nuvens de forma humana, pela palavra queimam
contradições passadas e presentes, peregrinam
em sarça que arde, enovelada, a fogo escuro,
iluminando a fronteira dúplice: os reflexos intermitentes
entre os vultos amalgamados de uma greda pobre
e uma sua imagem a lo divino feita;
não são muitos os que enfrentam o real, retesando a
percepção no meio dos salgueiros, em desapego
crepuscular dos instrumentos bíblicos:
flautas e cítaras sobre a terra tão áspera,
que tocam e rejeitam e tocam,
entre a decepção e o declive, no fio bambo
sobre os rios que vão por babilónia.
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11.05.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
in “Antologia dos Sessenta Anos”
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali,
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: – morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
que eu sempre fui bom cavaquista
nem é preciso repeti-lo:
anos depois já só se avista
tanto canário, tanto grilo,
tanto gorjeio, tanto trilo
que de promessas se guarnece:
um mundo e outro, isto e aquilo,
e o povo tem o que merece.
vi engrossar de boys a lista,
vi saltitar mais do que esquilo,
de galho em galho ser artista,
e armar o estado em crocodilo.
voracidade? era do estilo.
economia? ai que arrefece!
vi portugal vendido ao quilo
e o povo tem o que merece.
vi muito pássaro na pista
já de asa murcha e intranquilo,
já sem alface nem alpista
e já sem grão dentro do silo,
secou a teta e o mamilo,
chegou a hora, chega o stress.
há vários anos que eu refilo,
e o povo tem o que merece.
senhor, na entrada deste asilo,
mordeu-se a isca da benesse
e o povo tem o que merece.
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