Nota biográfica

Alberto Pimenta (Porto, 26 de Dezembro de 1937) é um escritor, poeta e ensaísta português. Destaca-se entre os autores europeus contemporâneos pelo carácter crítico e irreverente da sua obra.

“Elegia”, poema de Alberto Pimenta.

21.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

já nada é o que era
e provavelmente nunca mais o será
e mesmo que o fosse
algo me diz que já não seria o que era
porque o que era
era o que era por ser o que era
do que eu me lembro muito bem
embora eu então não fosse o que agora sou
mas o que agora sou
ou estou a ser
é deixar de ser o que sou
porque eu sou deixando de ser
deixar de ser é a minha maneira de ser
sou em cada instante
o que já não sou
e o mesmo se deve passar com tudo o que é
motivo por que não admira que assim seja
quer dizer
que nada seja o que era
e se assim é
ou já não é
seja ou não seja

Alberto Pimenta, in ‘Ascensão de Dez Gostos à Boca’

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“Já?” de Alberto Pimenta.

04.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

já tentaste praticar o bem
fazendo mal?
já tentaste praticar o mal
fazendo bem?
já tentaste praticar o bem
fazendo bem?
já tentaste praticar o mal
fazendo mal?
já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?
já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?
já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?
e o contrário, já tentaste?
já?
seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga.

Alberto Pimenta, in ‘Prodigioso Acanto’

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Alberto Pimenta – “Morreram todos…”

22.07.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

morte

artur hipólito morreu com 62 anos, 20 anos após ter feito 42, mas na altura quem diria?
heitor fragoso morreu atropelado. foi levado para o hospital, mas esqueceram-se duma parte do corpo no local do acidente.
manuel testa morreu sem se ter conseguido habituar a este modo
de mal-estar no mundo.
arnaldo rodrigues caiu a um buraco da canalização e nunca mais
foi visto.
jeremias cabral pôs termo à existência por motivos desconhecidos.
zeca gomes morreu em defesa da pátria mas a pensar noutra coisa.
antónio de oliveira morreu igual a si mesmo: triste sinal dos tempos!
bernardo leite pôs-se a pensar na morte e não conseguiu voltar a
trás.
ivo gouveia tinha uma agência funerária e escolheu para si um
caixão representativo.
guilherme silva fechou-se no sótão, para morrer num lugar elevado.
luís dimas respirava saúde, agora respira um hálito de eternidade.
antónio garcia, o coveiro, teve uma síncope e caiu dentro da cova que estava a abrir.
bento nogueira engasgou-se com um pedaço de carne e desapareceu do nosso convívio.
paiva de jesus enforcou-se.
joão baptista viu o cunhado levantar-se do caixão e teve uma síncope.
lourenço pinheiro estava a ver a trovoada e um relâmpago entrou lhe por um olho e saiu-lhe pelo outro.
jorge velez de castro finou-se após uma longa vida de sacrifícios, toda dedicada ao bem-comum. e foi assim: depois de ter ingerido o seu sumo de laranja, foi conduzido para a cadeira de repouso pelo enfermeiro de confiança. nela se conservou, de boca entreaberta e olhos fechados, atéàs onze horas. às onze horas, o enfermeiro de confiança aproximou-se com a intenção de o conduzir ao banho. pondo delicadamente a mão nas costas da cadeira, disse: são horas do banho, senhor director. como este não desse sinal de ter ouvido, o enfermeiro de confiança, com a costumada jovialidade, debruçou-se e repetiu:são horas do banho, senhor director. posto isto, empurrou a cadeira até ao balneário, passou um braço pelos rins outro por baixo dos joelhos do director, e assim o levou para a água, só então se dando conta de que ele já não vivia.
zé maria, o peidolas, foi expulso da vida pela autoridade competente.
joão gaspar foi um nobre e valoroso homem que morreu heroicamente no campo da honra. paz à sua alma.
raul santos deitou-se um dia e por mais que o sacudissem nunca mais se levantou.
alfredo penha caiu tão desastradamente da cama que nem é possível dar pormenores da sua morte.
joaquim perestrelo morreu no meio da missa, qual quê! ainda a missa não ia a metade!
sousa dias morreu de pé, mas enterraram-no deitado, como toda a gente.

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Alberto Pimenta – “Civilidade” (sem música)

12.08.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.

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Alberto Pimenta – “Porco trágico”

09.05.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

conheço um poeta
que diz que não sabe se a fome dos outros
é fome de comer
ou se é só fome de sobremesa alheia.

a mim o que me espanta
não é a sua ignorância:
pois estou habituado a que os poetas saibam muito de si
e pouco ou nada dos outros.

o que me espanta
é a distinção que ele faz:
como se a fome da sobremesa alheia
não fosse
fome de comer
também.

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Alberto Pimenta – “Civilidade”

09.05.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

estoiro13

não tussa madame
reprima a tosse

não espirre madame
reprima o espirro

não soluce madame
reprima o soluço

não cante madame
reprima o canto

não arrote madame
reprima o arroto

não cague madame
reprima a merda

e quando estourar
que seja devagarinho
e sem incomodar, ok madame?

ok, monsieur.

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Alberto Pimenta – “Filho da puta”

06.05.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

merda13

O pequeno filho-da-puta
é sempre
um pequeno filho-da-puta;
mas não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho-da-puta.

no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
Grandes e filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho-da-puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho-da-puta.

o pequeno
filho-da-puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho-da-puta.

no entanto,
o pequeno filho-da-puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho-da-puta.
todos os grandes
filhos-da-puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

dentro do
pequeno filho-da-puta
estão em ideia
todos os grandes filhos-da-puta,
diz o
pequeno filho-da-puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho-da-puta,
diz o pequeno filho-da-puta.

o pequeno filho-da-puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho-da-puta.

é o pequenofilho-da-puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho-da-puta,
diz o
pequeno filho-da-puta.
de resto,
o pequeno filho-da-puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho-da-puta:
o pequeno filho-da-puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

no entanto,
há filhos-da-puta
que já nascem grandes
e filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.

de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.

por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em ser
o grande filho-da-puta.

todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.

dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o
grande filho-da-puta.

tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz
o grande filho-da-puta.

o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.

é o grande filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho-da-puta,
diz o
grande filho-da-puta.

de resto,
o grande filho-da-puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,
o grande filho-da-puta.

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