Nota biográfica

Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005). Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com «essa debilidade do coração que é a amizade».

“Corpo Habitado”, poema de Eugénio de Andrade.

11.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Corpo num horizonte de água, corpo aberto

à lenta embriaguez dos dedos, corpo defendido pelo
fulgor das maçãs,

rendido de colina em colina, corpo amorosamente
humedecido pelo sol dócil da língua.

Corpo com gosto a erva rasa de secreto jardim,

corpo onde entro em casa, corpo onde me deito
para sugar o silêncio, ouvir 
a
música das espigas, respirar 

a doçura escuríssima das silvas.

Corpo de mil bocas,

e todas fulvas de alegria,

todas para sorver,

todas para morder até que um grito irrompa das
entranhas 
e
suba às torres,

e suplique um punhal.



Corpo para entregar às lágrimas.

Corpo para morrer.

Corpo para beber até ao fim – meu oceano breve

e branco,

minha secreta embarcação, meu vento favorável,

minha vária e sempre incerta navegação.

Facebooktwittermailby feather

“Auto-procura”, poema de Daniel Filipe.

08.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

O meu Eu, deixei-o abandonado

P’los caminhos da Dor e da Ilusão. 

Sou um cego, sem guia nem bordão… 

Um farrapo aos ventos atirado.

Todos os sonhos bons que hei sonhado 

Queimaram-se na chama da Paixão…

E onde havia, outrora, um coração

Há um abismo sem fundo de pecado.

Entre o que fui e o que sou, a cada instante,

Há em mim uma luta fatigante

Que a minha alma gasta não suporta…

Na ânsia de encontrar-ME (vão intento!),

Meus dias vou gastando, num tormento,

A procurar de MIM, de porta em porta!… 


Facebooktwittermailby feather

“Lágrimas” de Cesário Verde.

07.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ela chorava muito e muito, aos cantos,

Frenética, com gestos desabridos;

Nos cabelos, em ânsias desprendidos, 

Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,

Deitado no sofá, pés aquecidos,

Ao sentir-lhe os soluços consumidos,

Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos:

— Tu pareces nascida de rajada, 

Tens despeitos raivosos, resolutos;

Chora, chora, mulher arrenegada;

Lacrimeja por esses aquedutos…

Quero um banho tomar d’água salgada.

Porto, Diário da Tarde, 21 de Janeiro de 1874

Facebooktwittermailby feather

“Noite do Silêncio” de José Gomes Ferreira.

06.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

A Lua tece rendas de Bretanha
com linhas de luar, fibras de lírios,
enquanto amortalhadas em martírios
choram as coisas numa língua estranha.

A Noite é o fantasma que se entranha
na nossa própria alma entre delírios;
e as estrelas no Céu são como círios
a iluminar o Templo da Montanha.

Perpassa o Vento, a pobre alma penada
no mundo há tanto tempo condenada
p’lo crime de rasgar o arvoredo.

Na Noite há um silêncio-catedral.
A Lua estende um manto oriental
e a Vida é o sinónimo de Medo.

José Gomes Ferreira
De «Lírios do Monte», 1918

Facebooktwittermailby feather

“Desconfiai”, poema de Bertolt Brecht.

05.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Desconfie do mais trivial
na aparência do singelo
examine sobretudo
o que parece habitual.
Suplico expressamente
não aceite o que é de hábito
como coisa natural.
Pois em tempos de desordem
sangrenta
de confusão organizada
de arbitrariedade consciente
de humanidade desumanizada
nada deve parecer natural
ou impossível de mudar.”

Bertolt Brecht (1898-1956)
Leituras Livres

Facebooktwittermailby feather

“Imagem”, de Miguel Torga.

27.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este é o poema duma macieira.
Quem quiser lê-lo,
Quem quiser vê-lo,
Venha olhá-lo daqui a tarde inteira.

Floriu assim pela primeira vez.
Deu-lhe um sol de noivado,
E toda a virgindade se desfez
Neste lirismo fecundado.

São dois braços abertos de brancura;
Mas em redor
Não há coisa mais pura,
Nem promessa maior.

Vila Nova, 4 de Abril de 1936
in Diário I

Facebooktwittermailby feather

“Lentos nos fomos esquecendo”, de Fernando Echevarría.

26.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Lentos nos fomos esquecendo. Quando
o tempo da velhice nos foi vindo
a tez apareceu amorenada de anos
e afeita ao espírito.
A lavoura sabia aos nossos passos.
Até os desperdícios
iluminavam debilmente o armário
e a penumbra dos rincões escritos.
Mas nós só estávamos
em nos havermos esquecido.
Ou, às vezes, a aura do trabalho
quase fazia com que na mesa o sítio
aparecesse coroado de anos
sobre a mão a mover-se pelo seu próprio espírito.

Fernando Echevarría, in “Figuras”

Facebooktwittermailby feather

“Noite do silêncio”, poema de José Gomes Ferreira.

25.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

A Lua tece rendas de Bretanha
com linhas de luar, fibras de lírios,
enquanto amortalhadas em martírios
choram as coisas numa língua estranha.

A Noite é o fantasma que se entranha
na nossa própria alma entre delírios;
e as estrelas no Céu são como círios
a iluminar o Templo da Montanha.

Perpassa o Vento, a pobre alma penada
no mundo há tanto tempo condenada
p’lo crime de rasgar o arvoredo.

Na Noite há um silêncio-catedral.
A Lua estende um manto oriental
e a Vida é o sinónimo de Medo.

José Gomes Ferreira
De «Lírios do Monte», 1918

Facebooktwittermailby feather

“Jardim Perdido” de Sophia de Mello B. Andresen

24.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Jardim em flor, jardim de impossessão,
Transbordante de imagens mas informe.
Em ti se dissolveu o mundo enorme,
Carregado de amor e solidão.

A verdura das árvores ardia,
O vermelho das rosas transbordava.
Alucinado cada ser subia
Num tumulto em que tudo germinava.

A luz trazia em si a agitação
De paraísos, deuses e de infernos,
E os instantes em ti eram eternos
De possibilidade e suspensão.

Mas cada gesto em ti se quebrou, denso
Dum gesto mais profundo em si contido,
Pois trazias em ti sempre suspenso
Outro jardim possível e perdido.

Facebooktwittermailby feather

“Outros terão um lar”, poema de Fernando Pessoa.

23.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

«Que importa?»
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

«Quem tem de ser?»
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
pois não esquece.

Isso até quando?
Não sei. Só tenho consolação
Que os olhos se em vão acostumando
À escuridão.

Facebooktwittermailby feather

“À memória de Catarina Eufémia”, de Alexandre O´Neill

20.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Podes mudar de nome, carrajola
pôr umas asas brancas, arvorar
um ar contrito,
dizer que não, que não foi contigo,
disfarçar-te de andorinha, de sobreiro 
ou de velhinha,
podes mudar de nome, carrajola,
de aldeia, de vila ou de cidade
— és como um percevejo num lençol!

Quando tivermos Portugal nos braços
e pudermos amá-lo sem sofrer,
quando o Alentejo se puser a rir,
Catarina Eufémia, minha irmã,
então o teu filho há-de nascer!

Facebooktwittermailby feather

“Heroísmos”, poema de Cesário Verde.

18.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu temo muito o mar, o mar enorme, 

Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;

O mar sublime, o mar que nunca dorme.


Eu temo o largo mar, rebelde, informe, 

De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.


Contudo, num barquinho transparente, 

No ser dorso feroz vou blasonar,

Tufada a vela e nágua quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,

Escarro, com desdém, no grande mar!

Facebooktwittermailby feather

“Viagem”, poema de Ary dos Santos.

17.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Persegue-me na noite a voz do impossível,
Rebentam-me aos ouvidos as ampolas de sangue.
Avanço devagar para a hidra intangível

Que dorme no horizonte do lado do levante.

Fascinam-me o mistério do seu rosto sem nome,

O muro de silêncio que a separa de mim,

A jornada no escuro, os perigos, os escombros, 

As barreiras de sombra a que vou pondo fim.

Avanço devagar para a hidra que dorme

O seu sono latente na véspera de mim.

E percorro países como esqueço palavras 

E atravesso rios como desprezo leis

E pairo nas alturas com as costas voltadas 

Aos séculos de pasmo que para trás deixei.

Avanço devagar para a hidra que dorme

O seu sono de pedra num abismo sem fundo.

É a hora em que a terra não gira,

Em que o vento não corre.

É o tempo do homem descobrir o mundo.

Facebooktwittermailby feather

“A paz sem vencedor nem vencido”, de Sophia de Mello B. Andresen.

16.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Que o tempo que nos deste seja um novo

Recomeço de esperança e de justiça

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência

Para podermos ler melhor a vida

Para entendermos vosso mandamento

Para que venha a nós o vosso reino

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos

Dai-nos a paz que nasce da verdade

Dai-nos a paz que nasce da justiça

Dai-nos a paz chamada liberdade

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Facebooktwittermailby feather

“Arte Poética” de Adília Lopes

13.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Escrever um poema,
é como apanhar um peixe,
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe,
mas posso falar assim!
sei que nem tudo o que vem às mãos,
é peixel
o peixe debate-se,
tenta escapar-se
escapa-se,
eu persisto,
luto corpo a corpo,
com o peixel
ou morremos os dois,
ou nos salvamos os dois |
tenho de estar atental
tenho medo de não chegar ao fiml
é uma questão de vida ou de mortel
quando chego ao fim,
descubro que precisei de apanhar o peixe,
para me livrar do peixel
livro-me do peixe com o alívio,
que não sei dizer

Facebooktwittermailby feather

“Estigma”, de Ary dos Santos.

12.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Filhos dum deus selvagem e secreto

E cobertos de lama, caminhamos Por cidades,

Por nuvens 

E desertos.

Ao vento semeamos

O que os homens não querem.

Ao vento arremessamos

As verdades que doem

E as palavras que ferem.

Da noite que nos gera, e nós amamos, 

Só os astros trazemos.

A treva ficou onde

Todos guardamos a certeza oculta

Do que nós não dizemos.

Mas que somos.

Facebooktwittermailby feather

“Sou um Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro.

11.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos
sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva, 

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, 

Sei a verdade e sou feliz.

Facebooktwittermailby feather

“…do medo”, poema de Carlos Drummond de Andrade

10.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Facebooktwittermailby feather

“Poema a Salgueiro Maia”, poema de Manuel Alegre.

05.04.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Ficaste na pureza inicial
do gesto que liberta e se desprende.
Havia em ti o símbolo e o sinal
havia em ti o herói que não se rende.
Outros jogaram o jogo viciado
para ti nem poder nem sua regra.
Conquistador do sonho inconquistado
havia em ti o herói que não se integra.
Por isso ficarás como quem vem
dar outro rosto ao rosto da cidade.
Diz-se o teu nome e sais de Santarém
trazendo a espada e a flor da liberdade.”
Honremos a sua memória!

Facebooktwittermailby feather

“Periclitam os Grilos”, poema de Alexandre O’Neill.

04.04.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Periclitam os grilos:
a noite é nada.
Quem tem filhos tem cadilhos.
(Que quadra tão bem rimada!)

Não espere, leitor, que eu diga:
«Debaixo daquela arcada…»
Não venho fazer intriga:
versejo só – e mais nada.

Assim o terceiro verso
desta tirada
(reparou que é um provérbio?)
não significa mais nada.

Se a noite é nada e os grilos
não estão de asa parada,
não vou puxar, só por isso,
o fio à sua meada,

leitor que me pede a história
que já traz engatilhada,
leitor que não se habitua
a que não aconteça nada

em poesia que comece
como esta foi começada
e acabe como esta
vai ser agora acabada…


Alexandre O’Neill
[de “Abandono Vigiado” 1960]
in «Poesias Completas», Assírio & Alvim, 2000
Introdução de Miguel Tamen

Facebooktwittermailby feather

“Num álbum”, poema de Cesário Verde.

01.04.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

I
És uma tentadora: o seu olhar amável
Contém perfeitamente um poço de maldade,
E o colo que te ondula, o colo inexorável
Não sabe o que é paixão, e ignora o que é bondade.
II
Quando me julgas preso a eróticas cadeias

Radia-te na fronte o céu das alvoradas,
E quando choro então é quando garganteias

As óperas de Verdi e as árias estimadas.
III
Mas eu hei-de afinal seguir-te a toda a parte,
E um dia quando eu for a sombra dos teus passos, 

Tantos crimes terás, que eu hei de processar-te,
E enfim hás de morrer na forca dos meus braços.

Facebooktwittermailby feather

“Estou tonto”, poema de Álvaro de Campos

31.03.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Estou tonto,
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
Ou de ambas as coisas.
O que sei é que estou tonto
E não sei bem se me devo levantar da cadeira
Ou como me levantar dela.
Fiquemos nisto: estou tonto.
Afinal
Que vida fiz eu da vida?
Nada.
Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada.
É por isso que estou tonto …
Agora
Todas as manhãs me levanto
Tonto …
Sim, verdadeiramente tonto…
Sem saber em mim e meu nome,
Sem saber onde estou, a
Sem saber o que fui,
Sem saber nada.
Mas se isto é assim, é assim.
Deixo-me estar na cadeira,
Estou tonto.
Bem, estou tonto.
Fico sentado
E tonto,
Sim, tonto,
Tonto…
Tonto.

Facebooktwittermailby feather

“Cai chuva”, poema de Fernando Pessoa.

03.03.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa
        Substitui o calor.
P’ra ser feliz tanta coisa é precisa.
        Este luzir é melhor.

O que é a vida? O espaço é alguém para mim.
        Sonhando sou eu só.
A luzir, em quem não tem fim
        E, sem querer, tem dó.

Extensa, leve, inútil passageira,
        Ao roçar por mim traz
Uma ilusão de sonho, em cuja esteira
        A minha vida jaz.

Barco indelével pelo espaço da alma,
        Luz da candeia além
Da eterna ausência da ansiada calma,
        Final do inútil bem.

Que se quer, e, se veio, se desconhece
        Que, se for, seria
O tédio de o haver… E a chuva cresce
        Na noite agora fria

Facebooktwittermailby feather

“Arte Poética”, poema de Adília Lopes.

01.03.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Adília Lopes, in ‘Um Jogo Bastante Perigoso’

Facebooktwittermailby feather

“O Jardim”, poema de Sophia de Mello B. Andresen.

28.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

O jardim está brilhante e florido,
Sobre as ervas, entre as folhagens,
O vento passa, sonhador e distraído.
Peregrino de mil romagens.

É Maio ácido e multicolor,
Devorado pelo próprio ardor,
Que nesta clara tarde de cristal
Avança pelos caminhos
Até os fantásticos desalinhos
Do meu bem e do meu mal.

E no seu bailado levada
Pelo jardim deliro e divago,
Ora espreitando debruçada
Os jardins do fundo do lago,
Ora perdendo o meu olhar
Na indizível verdura
Das folhas novas e tenras
Onde eu queria saciar
A minha longa sede de frescura.

Facebooktwittermailby feather

“Outono”, poema de David Mourão-Ferreira.

24.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono… Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará…)


E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo…

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto…
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol posto…

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo…?
Seria Outono…
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

David Mourão-Ferreira, in “A secreta viagem”,
Obra Poética, 5ª ed., Editorial Presença, 2006

Facebooktwittermailby feather

“H”, poema de António Maria Lisboa.

23.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sei que dez anos nos separam de pedras
e raízes nos ouvidos

e ver-te, ó menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinito

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terra

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos.

in “Ossóptico e Outros Poemas”

Facebooktwittermailby feather

“Amador sem coisa amada”, poema de António Gedeão.

22.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
sou amador da existência,
não chego a profissional.

Facebooktwittermailby feather

“Canção”, poema de Eugénio de Andrade.

18.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tinha um cravo no meu balcão:
Veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?


Sentada, bordava um lenço de mão
Veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,

Só não dei o coração;
Mas se o rapaz mo pedir
– mãe, dou-lho ou não?


Em “Primeiros Poemas”

Facebooktwittermailby feather

“Guerra e Paz”, poema de Luís Castro Mendes.

17.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Varrida pela chuva a álea rasa,
sai o inverno nesta primavera.
O Tempo quis negar-nos sua casa,
a História faz de farsa ou de quimera

prometida por doutos e por santos
que nos levam, de cegos ao abismo:
folheio pela noite fólios tantos,
que já não sei se sonho no que cismo.

Este tempo não sabe da desgraça,
repete sem cessar a ladaínha :
liberdade que nasce em cada praça,


alvorecer enfim que se avizinha!
Mas no amanhecer, entre destroços,
o tempo varre cinzas, restos, ossos.

“Outro Ulisses Regressa a Casa”, 2016

Facebooktwittermailby feather