Guerra Junqueiro – “A moleirinha”
19.09.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Abílio Manuel Guerra Junqueiro (Freixo de Espada à Cinta, 17 de Setembro de 1850 — Lisboa, 7 de Julho de 1923) foi bacharel formado em direito pela Universidade de Coimbra, alto funcionário administrativo, político, deputado, jornalista, escritor e poeta. Foi o poeta mais popular da sua época e o mais típico representante da chamada "Escola Nova". Poeta panfletário, a sua poesia ajudou criar o ambiente revolucionário que conduziu à implantação da República.
19.09.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque, Antes
que anoiteça, toque, toque, toque, A
velhinha atrás, o jumentito adiante!…
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!… E
contudo alegre como um passarinho, Toque,
toque, e fresca como o branco linho, De
manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca, O
jerico ruço duma linda cor; Nunca foi
ferrado, nunca usou retranca, Tange-o,
toque, toque, a moleirinha branca Com o
galho verde duma giesta em flor.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação! Minha
avó ceguinha se me representa… Tinha eu
seis anos, tinha ela oitenta, Quem me fez o
berço fez-lhe o seu caixão!…
Toque, toque, toque, lindo burriquito, Para
as minhas filhas quem mo dera a mim! Nada
mais gracioso, nada mais bonito! Quando a
virgem pura foi para o Egipto, Com certeza
ia num burrico assim.
Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas em cardume…
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta, Pra
vestir os netos, pra acender o lume…
Toque, toque, toque, como se espaneja, Lindo
jumentinho pela estrada chã! Tão ingénuo e
humilde, dá-me, salvo seja, Dá-me até vontade
de o levar à igreja, Baptizar-lhe alma, prà
fazer cristã!
Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata… Foi
enfarinhada, sorridente amiga, Pela mó da
azenha com farinha triga, Pelos anjos loiros
com luar de prata!…
Toque, toque, como o burriquito avança! Que
prazer doutrora para os olhos meus! Minha
avó contou-me quando fui criança, Que era
assim tal qual a jumentinha mansa Que adorou
nas palhas o menino Deus…
Toque, toque, é noite… ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!… Toque, toque,
e os astros abrem diamantinos, Como
estremunhados querubins divinos, Os olhitos
meigos para a ver passar…
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro, Ente
os milhões d’astros o luar sem véu, O
burrico pensa: Quanto milho loiro! Quem
será que mói estas farinhas d’oiro Com a
mó de jaspe que anda além no Céu!
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13.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Se ergueis uma capela à água milagrosa,
Esse elixir divino,
Então erguei também um templo à caparrosa
E outro templo ao quinino.
Se a água faz milagres, o que eu vos não discuto,
E por isso a adorais,
Ajoelhemos então em face do bismuto
e doutras drogas mais.
Façamos da magnésia e clorofórmio e arnica
As hóstias do sacrário;
Transformemos o templo enfim numa botica,
E Deus num boticário
Que a vossa água opere imensas maravilhas
Eu não duvido nada:
É o Espírito Santo engarrafado em bilhas,
É o milagre à canada.
Desde que se espalhou pelo universo o eco
Do milagre feliz,
Tartufo nunca mais encheu o seu caneco
Em outro chafariz
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11.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Namorou-se uma princesa
Dum pajem loiro e gentil;
Chama-se ela – Natureza,
Chama-se o pajem – Abril.
A Primavera opulenta,
Rica de cantos e cores,
Palpita, anseia, rebenta
Em cataclismos de flores.
(…)
Tudo ri e brilha e canta
Neste divino esplendor:
O orvalho, o néctar da planta
O aroma, a língua da flor.
Enroscam-se aos troncos nus
As verdes cobras da hera.
Radiosos vinhos de luz
Cintilam pela atmosfera.
Entre os loureiros das matas,
Que crescem para os heróis,
Dá o luar serenatas
Com bandas de rouxinóis.
É a terra um paraíso,
E o céu profundo lampeja
Com o inefável sorriso
Da noiva ao sair da igreja.
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11.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
No meio duma feira, uns poucos de palhaços
Andavam a mostrar, em cima dum jumento
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pés, sem braços,
Aborto que lhes dava um grande rendimento.
Os magros histriões, hipócritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento,
E o monstro arregalava os grandes olhos baços,
Uns olhos sem calor e sem entendimento.
E toda a gente deu esmola aos tais ciganos:
Deram esmola até mendigos quase nus.
E eu, ao ver este quadro, apóstolos romanos,
Eu lembrei-me de vós, funâmbulos da Cruz,
Que andais pelo universo há mil e tantos anos,
Exibindo, explorando o corpo de Jesus.
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