Guerra Junqueiro – “A moleirinha”
19.09.2012
Pela estrada plana, toque, toque, toque,
Guia o jumentinho uma velhinha errante.
Como vão ligeiros, ambos a reboque, Antes
que anoiteça, toque, toque, toque, A
velhinha atrás, o jumentito adiante!…
Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!… E
contudo alegre como um passarinho, Toque,
toque, e fresca como o branco linho, De
manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai sem cabeçada, em liberdade franca, O
jerico ruço duma linda cor; Nunca foi
ferrado, nunca usou retranca, Tange-o,
toque, toque, a moleirinha branca Com o
galho verde duma giesta em flor.
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação! Minha
avó ceguinha se me representa… Tinha eu
seis anos, tinha ela oitenta, Quem me fez o
berço fez-lhe o seu caixão!…
Toque, toque, toque, lindo burriquito, Para
as minhas filhas quem mo dera a mim! Nada
mais gracioso, nada mais bonito! Quando a
virgem pura foi para o Egipto, Com certeza
ia num burrico assim.
Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas em cardume…
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta, Pra
vestir os netos, pra acender o lume…
Toque, toque, toque, como se espaneja, Lindo
jumentinho pela estrada chã! Tão ingénuo e
humilde, dá-me, salvo seja, Dá-me até vontade
de o levar à igreja, Baptizar-lhe alma, prà
fazer cristã!
Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata… Foi
enfarinhada, sorridente amiga, Pela mó da
azenha com farinha triga, Pelos anjos loiros
com luar de prata!…
Toque, toque, como o burriquito avança! Que
prazer doutrora para os olhos meus! Minha
avó contou-me quando fui criança, Que era
assim tal qual a jumentinha mansa Que adorou
nas palhas o menino Deus…
Toque, toque, é noite… ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!… Toque, toque,
e os astros abrem diamantinos, Como
estremunhados querubins divinos, Os olhitos
meigos para a ver passar…
Toque, toque, e vendo sideral tesoiro, Ente
os milhões d’astros o luar sem véu, O
burrico pensa: Quanto milho loiro! Quem
será que mói estas farinhas d’oiro Com a
mó de jaspe que anda além no Céu!
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