Graça Pires – “Quero uma casa…”
30.10.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Graça Pires (Figueira da Foz, 22 de Novembro de 1946) é uma poetisa portuguesa. É licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Editou o seu primeiro livro em 1990, depois de ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro Poemas.
30.10.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quero uma casa com paredes azuis,
com varandas vidradas sobre a noite.
Um abrigado lugar no eixo do silêncio.
Um espaço intemporal. Sagrado.
Ancorado perto de um signo lunar,
ou preso a um verão inesperado.
Quero dançar dentro das palavras líquidas:
água, rio, mar, Lágrimas,
talvez o orvalho que escorre pelas árvores de madrugada.
Quero atravessar uma crónica de viagem,
conspirando contra os profetas de marés sobressaltadas,
para não morrer sufocada na engrenagem do medo.
Quero ficar seduzida de uma espera,
no imaginário dos que sonham,
e gritar a idade circular de qualquer afecto.
Quero amar o pretexto branco dos meus olhos
sem precipitar a cor translúcida das raízes
que prendem a noite à palidez do sol na sedução do amanhecer,
e deixar, depois, que um azul extenuado me denuncie.
(“Poemas Escolhidos – 1990-2011” Ed. da Autora)
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30.10.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
No meu país havia marinheiros
com braços de tempestade.
Havia um cais e um sonho
ateado em cada mastro.
E havia no vento o chamamento do mar.
Havia no meu país o voo antigo dos pássaros
para adivinhar a sina dos homens.
0 mistério do sangue e do parto
e o uivo das fêmeas em noites com Lua
havia também no meu país.
No meu país havia a terra e a memória
e os cantares de amigo
e a pressentida eternidade das palavras.
(“Poemas Escolhidos – 1990-2011” Ed. da Autora)
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30.10.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
À noite vou por aí,
ociosamente.
Percorro um ritual lilás
feito de violetas de pedra
e traço cada pausa
no retorno da lua inicial.
Aqui a memória é lenta
como as angústias.
Muitas vezes vejo árvores
com frutos azuis,
ou animais em nudez perfeita
respirando o vento.
A escuridão é o subterfúgio
inesperado do coração
quando o olhar aquece
e o orvalho é de cetim.
Há máscaras de búzios e limos
na cara de quem passa.
Nas suas vozes ouço o itinerário
das manhãs siderais
e nasce nos meus passos
o rumo da via láctea.
Ninguém me conhece.
Venho do arco-íris
e trago nos dedos
o ângulo transparente da noite.
(“Poemas Escolhidos – 1990-2011” Ed. da Autora)
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Os nomes que dei às mãos
desenham-se tão perto de mim
que compreendo o desejo sem fantasmas.
Nos dedos principiam as marés
e neles se misturam o reflexo e a máscara
de regressos e errâncias por equacionar.
Os olhos não se fixam na geografia
visível das linhas. Os corpos deixam
de ser um cais. O mar estremece
nos ossos como um sismo.
O primeiro sinal de naufrágio
percebe-se na palma da mão
mesmo quando os barcos
passam ao largo do nosso desalento.
Rente à solidão.
Na trajectória do vazio
onde inventamos os sons.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Vem de Novembro
esta seiva impetuosa,
onde as raízes da utopia
se perpetuam no sangue,
como um percurso alienado.
Um outono de sede
no interior descuidado das mimosas,
a semente e o parto
das amoras doces,
um carnaval cinzelado
no limite de um balão de vidro.
É noite de morrer
para adiar a vida,
noite polar
à medida da náusea
do que se aceita e recusa,
antinomia do vazio das mãos.
Vem de Novembro
a forma antecipada do prazer
e, por isso, todos os lugares são verdes.
De mãos erguidas
junto das nascentes,
convoco o inacessível
e construo os cenários
da infância que não tive.
Agora vou ser livre
de percorrer o vento
em linha recta,
de receber os afagos
às mãos cheias,
de pintar em todas as paredes
as bonecas de trapos que não fiz.
Agora posso marcar
um percurso feliz
no caminho que leva
à outra margem,
ou fabricar um enredo
onde a minha imagem,
petrificada e bela,
seja sempre o reflexo
do crepúsculo que se extingue.
depois, a vida há-de mover-se
como um vendaval inesperado,
mas nada toldará a limpidez
das lágrimas e da noite,
no ritual quotidiano de estar só.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quando anoitece
contorno no meu rosto
o perfil do dia que passou
e tudo o que não sou
me contradiz.
Quando anoitece
atravesso um labirinto
caiado de paixão,
pretexto circular
da minha fé.
Quando anoitece
faço emergir do abismo
um instinto quase secreto
e fujo da noite,
em vertiginosa simetria com o vento,
como se fosse um equívoco
esperar a madrugada
com a mesma lentidão
de um acto íntimo.
Contra um muro branco
esta lonjura gémea do vento.
Uma casa ou um regaço
alternando a desordem
de corpos molhados
numa dicotomia simulada
quando o prazer
é o reflexo nítido
de um coágulo de azul
queimado sobre madrepérolas.
São corais que no fundo da água
não quebram as vagas silvestres.
Nasci agora
enquanto uma andorinha
baloiçava no espelho
atravessado de pólen.
Sou, sílaba por sílaba,
o luto ou a negação
de desumanos deuses.
Quando anoitece …
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sem mais nem menos surgiu o passado,
Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.
Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.
À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.
Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.
Reinicio a infância
no esboço do poema
e circunscrevo o litoral
fragmentado do que sou.
Quem foi que descodificou
o céu no meu olhar
e me deixou na alma
um deus imaginado?
Quando o espaço do sonho é circular
como o tempo das cerejas,
ou da migração dos pássaros
que fendem o infinito,
inadiado é o rito da poesia.
Se eu fosse uma gaivota, dançaria
na proa dos veleiros
até à hipnose
de abraçar a maresia.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Os nomes que dei às mãos
desenham-se tão perto de mim
que compreendo o desejo sem fantasmas.
Nos dedos principiam as marés
e neles se misturam o reflexo e a máscara
de regressos e errâncias por equacionar.
Os olhos não se fixam na geografia
visível das linhas. Os corpos deixam
de ser um cais. O mar estremece
nos ossos como um sismo.
O primeiro sinal de naufrágio
percebe-se na palma da mão
mesmo quando os barcos
passam ao largo do nosso desalento.
Rente à solidão.
Na trajectória do vazio
onde inventamos os sons.
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07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Todos os dias me descubro
personagem de uma fábula
de sílabas e barcos,
entrançando as veias
no joelho da terra
como urzes incensadas no vento.
É quase eterna a raiz,
do corpo ou do mundo,
no tom húmido que agasalha
a semente, quando a erva cortada
se respira no sonho exausto
das árvores disponíveis.
Rodopio no emaranhado das sombras
que tocam os meus pés
e sobrevoo o chão movediço
que brilha nos meus olhos
como uma âncora ou um abraço.
Há um voo incerto na fita negra
enroscada, ao nascer, nos meus cabelos.
Pela vertente da tarde
deixo rolar as emoções,
desmedidamente,
como quem desvenda
os ângulos do improviso,
até à mutação perfeita da tristeza.
Presos ao lugar de nascer
não seremos os mesmos,
porque o grito das nuvens
há-de derreter o barro
que nos prende,
ou transformará em granito
o prolongamento do silêncio.
Conheço o oblíquo movimento dos pássaros
no pulsar perturbado do meu corpo,
quando é de musgo a periferia de um bosque.
Porque sou a significação extraviada do poema
é que os meus olhos se acendem na fragilidade.
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