Nota biográfica

Arnaldo Saldanha Abreu, nasceu em Lisboa em 12 de Abril de 1966. Licenciado em Sociologia do Trabalho. Depois de o terem ensinado nunca mais parou de ler e de escrever e esses são os passaportes com que viaja pelas histórias que cria e por aquelas que apreende e com as quais convive no seu imaginário. Alguns trabalhos assinados como Geronimo Lobo.

Arnaldo Saldanha Abreu – “Palavras”

17.03.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Rasgam-me a garganta.
As palavras soltam-se.
Como pombas da paz libertas de um tempo infértil
Voam, agora,
Esplêndidas
Precipitam-se a meus pés arfando vida num suicídio anunciado.
Esventradas,
Tingem-se com o sangue imaculado das palavras degoladas.
Decepam-me os dedos.
As palavras partem, desenleiam-se.
Renovo-me na carne decepada.
Com os dedos novos que me crescem
Teço reflexos de um reflexo oculto projectado no chão térreo
Viro as palmas das mãos para cima
Tento abarcar a pequenez do céu com a enormidade
de um abraço
Ajoelho-me na terra aquecida pelo sol breve que me trespassa
a espinha.
Curvo-me.
Nascemos para pequenos milagres.
Separam-me a língua.
As palavras desprendem-se, revoltam-se, personificam-se,
enleiam-se e fornicam
Indomáveis
Fazemos filhos,
Multiplicamos sangue,
Arrancamos a pele e gravamos na carne o tumulto ininterrupto
de um rio que saliva palavras.

(Do livro “Transparências e outros anexos”, editado em 2014 por “Euedito”.)

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Arnaldo Saldanha Abreu – “A Dama de Copas…”

20.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

As últimas cartas em cima da mesa
Às de trunfo e joker preto
Nódoas de café
Olhos doridos e embaciados
Vapor de whiskey
Inala e evapora
Mini-saia em pernas longilíneas
Tatuagens de flores colhidas pela manhã
Beijos-pimenta
Línguas de sabor a hortelã
Dama de Copas
E Valete de Espadas

Banco traseiro de um carro
Vermelho debitando rock and roll
A mil de cilindrada
Chegamos aos 100 em menos de nada
Sobe a saia
Desce o soutien
Acelero
Nos Montes Golan
Travo
Atravesso a Faixa de Gaza
Avançamos
Vimos-nos na Terra Prometida
Que Deus nos perdoe!
É sinuosa a estrada
Sinalização transversal
Houve um derrame libidinoso
Não deu para evitar a derrapagem

Sirene da polícia
Encosto na berma
Mas tão cedo, não cedo passagem
Boa noite, Senhor Agente!
Não tenho identificação
Roubei o carro em segunda-mão
É ecológico
Amigo do ambiente
Sabe como é?!
Move-se aos solavancos
De trás para a frente
Ela é a Bonnie e eu sou o Clyde
E ainda temos dois bancos para assaltar
De dia somos Jekill
E à noite estamos Hyde
Lascivamente idolatramos o sexo
E desprezamos o amor
Esse miserável deus racional.

Como todos os meus textos, também este fica inacabado e receptivo a ser prostituído a troco de nada. Decidi que não escrevo mais poemas de amor a transbordarem de metáforas pirosas e piegas. O sexo não precisa de lamechices da treta.

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