Nota biográfica

Irene do Céu Vieira Lisboa ( Arruda dos Vinhos, 25 de dezembro de 1892 – Lisboa, 25 de novembro de 1958), foi uma escritora, professora e pedagoga portuguesa. A escrita dominou toda a sua vida. A obra literária que produziu foi elogiada por alguns dos seus pares embora nunca tenha tido grande aceitação por parte do público.

“Amor” de Irene Lisboa

04.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Aqueles olhos aproximam-se e passam.

Perplexos, cheios de funda luz,

doces e acerados, dominam-me.

Quem os diria tão ousados? 

Tão humildes e tão imperiosos, 

tão obstinados!


Como estão próximos os nossos ombros!

Defrontam-se e furtam-se,

negam toda a sua coragem.

De vez em quando,

esta minha mão,

que é uma espada e não defende nada,

move-se na órbita daqueles olhos,

fere-lhes a rota curta,

Poderosa e plácida.



Amor, tão chão de Amor,

Que sensível és…

Sensível e violento, apaixonado. 

Tão carregado de desejos

Acalmas e redobras

e de ti renasces a toda a hora.

Cordeiro que se encabrita e enfurece

e logo recai na branda impotência.



Canseira eterna!

Ou desespero, ou medo. 

Fuga doida à posse, à dádiva.

Tanto bater de asas frementes,

tanto grito e pena perdida…

E as tréguas, amor cobarde?

Cada vez mais longe,

mais longe e apetecidas.
O amor, amor,

que faremos nós de ti

e tu de nós?


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Irene Lisboa – “Escrever”

26.08.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se eu pudesse havia de… de…
transformar as palavras em clava!
havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressoante!
Sem música, como um gesto,
uma pancada brusca e sóbria.
Para quê,
mas para quê todo o artifício
da composição sintáctica e métrica,
este arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras: pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo!
Vejo, admiro, desejo?
Ou não… ou sim.
E, como isto, continuando…
E gostava,
para as infinitamente delicadas coisas do espírito
(quais? mas quais?)
em oposição com a bravezdo jogo da pedrada,
da pontaria às coisas certas e negadas,
gostava…
de escrever com um fio de água!
um fio que nada traçasse…
fino e sem cor… medroso…
Ó infinitamente delicadas coisas do espírito.
Amor que se não tem,
desejo dispersivo,
sofrimento indefinido,
ideia incontornada,
apreços, gostos fugitivos…
Ai, o fio da água,
o próprio fio da água poderia
sobre vós passar, transparentemente…
ou seguir-vos, humilde e tranquilo?

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Irene Lisboa – “Jeito de escrever”

15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.

Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas…
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.

Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto – o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago…
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das
horas. Mortas!

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Irene Lisboa – “Chuvoso maio!”

15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deste lado oiço gotejar
sobre as pedras.
Som da cidade …
Do outro via a chuva no ar.
Perpendicular, fina,
Tomava cor,
distinguia-se
contra o fundo das trepadeiras
do jardim.
No chão, quando caía,
abria círculos
nas pocinhas brilhantes,
já formadas?
Há lá coisa mais linda

que este bater de água
na outra água?
Um pingo cai
E forma uma rosa…
um movimento circular,
que se espraia.
Vem outro pingo
E nasce outra rosa…
e sempre assim!

Os nossos olhos desconsolados,
sem alegria nem tristeza,
tranquilamente
vão vendo formar-se as rosas,
brilhar
e mover-se a água…

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Irene Lisboa – “Outro dia”

15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Escrever assim …
escrever sem arte,
sem cuidado,
sem estilo,
sem nobreza,
nem lindeza …
sem maior concentração,
sem grandes pensamentos,
sem belas comparações,
não será escrever!
Mas assim me apetece,
que o entendam ou não,
que o admitam ou não,
escrever …
estender
o delgado, estiado,
inoperante
pensamento.
Este pensar
não é actuar mentalmente,
sequer,
é descansar …

Estive deitada,
e agora estou sentada.
Deitada via as nuvens,
brancas do sol,
brilhantes,
enoveladas.
Tanta brancura
à frente dos meus olhos!
Afogava-me nela.
De que me lembrava?
Nem eu já sei.
As ideias do dia,
picadas sem dor,
a que sorria,
como apareciam, desapareciam …
Realmente,
só na hora,
no pleno instante
de nos assaltarem,
frescas e imprevistas,
têm o seu sabor.

Deitada,
com a luz nos olhos,
sonhava … sei que sonhava…
na única coisa em que se sonha,
na única em que se pensa,
naquela que é a trama,
o fundo ora baço,
ora vivo,
persistente e teimoso,
das nossas preocupações …

Antes ensaiei vestidos,
mas todos usados …
Vestidos do verão, 

leves,
remoçantes,
que dá gosto ensaiar.
É uma experiência que se faz …
Vemo-nos ao espelho
e ele que nos diz?
Tudo o que desejamos
e também o que receamos …
Que me diz o espelho?
Fala-me dos olhos, 


fala-me do corpo,


engana-me …

Mas também me diz, 

tantas vezes!:
nada esperes,
és tola.

Ai que podem os vestidos, 

que podem os espelhos? 

Tempo!
Tu é que tens a última palavra! 

Corres,
e, sem dó, tudo inutilizas. 

Bem hajas!
Inutiliza! Mas não demores!


Destrói! Mata!
Que o pior mal,
de todos o pior,
é esperar,
sempre esperar.

(Arruda dos Vinhos, 1892-1958)

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Irene Lisboa – “Afrodite”

11.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro…
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas…
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necró-
pole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo…
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro-
vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono…
Já passaram sobre ti dois mil anos?

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