Fernando Pinto do Amaral – “Praia”
15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Fernando José Branco Pinto do Amaral (Lisboa, 12 de Maio de 1960) é um professor de Literatura e poeta português. Frequentou a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, mas desistiu do curso em prol das letras. Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas e doutorado em Literatura Românica, lecciona desde 1987 no Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Feliz, quem sabe, o vento. Sem memória,
beijando-me nos lábios, ele abraça
o meu destino às cegas na paisagem.
É sempre nesse instante que regresso
à poalha do céu onde começa
talvez a maldição, talvez o encanto
de invocar-te em silêncio. Porque, eu sei,
entre palavras morre a cor dos sonhos,
o vão pressentimento de estar vivo.
Feliz talvez o vento e no entanto,
arrasta ainda areia e vagas vozes
na praia ao abandono. A luz da tarde
encobriu-se de névoa, só o mar
ficou perto de mim – agora é simples:
as ondas trazem novo o teu sorriso,
movem o seu abismo nos meus olhos,
mas lágrimas nenhumas vão salvar-me o corpo,
a alma, as cinzas, esta vida.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Às vezes é tão bom ver nascer uma estrela
ao fim da tarde, à hora em que declina
a alegria dos pássaros,
este verde sem alma nem corpo
talvez ainda à flor de uma canção.
De rumor em rumor
absorvo o que resta dos deuses
entre o cheiro da terra e o calor de uns lábios – os teus,
esses que nunca me beijaram.
Paisagem acabada de morrer,
aceita-me e ensina-me p’Io menos
uma simples palavra.
Só queria uma palavra que te amasse
pela primeira vez. Desisti de saber
onde mora o teu rosto, onde começa
a sua melodia – meu amor,
acredita,
às vezes é melhor ficar assim,
ver como o céu se despe ou se despede
de tudo o que foi luz e se transforma agora
na música das sombras.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Aqui te sequestramos, meu amor:
ergues os braços, viras a cabeça
cada vez mais atenta – são dois olhos
onde começa o mundo.
Que ciência é a tua? Que magia
transforma a luz de cada lâmpada
no mais puro relâmpago?
É tão difícil encontrar saída,
uma linha de fuga para os gestos,
uma resposta digna desses gritos.
Ensina-me a romper todas as grades
do berço que te embala,
a abrir contigo as portas, decifrando
a matéria que é mais do que matéria,
a que chamamos corpo.
Aqui te sequestramos, com o amor
de quem sabe e não sabe e talvez
não tenha salvação.
Assim te sequestramos, assim estamos
também nós sequestrados desde sempre
no prazer e na dor,
à procura de um íman que nos fale;
de alguém para escutar o nosso antigo pranto;
de uma vez que nos cante às escuras
até adormecermos.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome – essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Jantáramos os dois pela primeira vez:
amizade ou amor, pouco interessava
desde que alí estivesses. O meu mundo
ia mudando à medida do teu,
a cada gesto vão da vã conversa
antes que fôssemos pIo Bairro Alto
e enfim o Lumiar, a tua casa.
Eu podia contar uma história, dizer
como aquele rosto atravessava o meu -mas não,
«nada de narrativas, nunca mais».
Apenas a certeza de estar morto
há tanto tempo, que já não me lembro
de cor nenhuma dos teus olhos. Não,
já não existe o dia nem a noite
e este silêncio deve ser talvez
a única resposta. É bem melhor
ficar à espera de que não regresses.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não sei
o que é um espírito. Ninguém
conhece a fundo a luz do seu abismo
enquanto o vento, à noite, vai abrindo
as infinitas portas de uma casa
vazia. A minha voz
procura responder a outra voz,
ao choro dos espectros que celebram
a sua missa negra, o seu eterno
sobressalto. Num ermo
da cidade magoada escuto ainda
o rumor de um oráculo,
a febre de um adeus que se prolonga
no estertor dos ponteiros de um relógio,
nesse ritmo feroz, na pulsação
do meu sangue exilado que recorda
um abrigo divino. pai nosso, que estás
entre o céu e a terra, conduz-me
ao precipício onde hibernou a alma
e ensina-me a romper a madrugada
como se a minha face fosse
um estilhaço da tua
e nela derretessem, por milagre,
estas gotas de gelo ou de cristal
que não sabem ser lágrimas.
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15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Palavras,
só palavras, nada mais
que a vã matéria, o seu sentido
eco de muitos ecos, repetido
reflexo de poderes tão irreais
como essas emoções graças às quais
terei de vez em quando pretendido
dizer um só segredo a um só ouvido
ciente de que nunca são iguais
os segredos e ouvidos que procuro
às cegas neste mar sempre obscuro
onde a voz desagua como um rio
sem nascente nem foz – apenas uma
incerta confidencia que se esfuma
e só foi minha enquanto me fugiu.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
É mais fácil partir quando o silêncio
transpõe a tua voz.
Mais simples celebrar a tão efémera
certeza de estares vivo.
A música do ar esvai-se nas sombras,
tu sabes que é assim,
que os dias correm céleres, não tentes
perseguir o seu rasto – repara
como em abril as aves são felizes.
Sê como elas: não perguntes nada,
deixa que o sol responda à flor da tarde
e esquece-te do mundo.
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