“Corpo Habitado”, poema de Eugénio de Andrade.
11.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005). Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com «essa debilidade do coração que é a amizade».
11.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Corpo num horizonte de água, corpo aberto
à lenta embriaguez dos dedos, corpo defendido pelo
fulgor das maçãs,
rendido de colina em colina, corpo amorosamente
humedecido pelo sol dócil da língua.
Corpo com gosto a erva rasa de secreto jardim,
corpo onde entro em casa, corpo onde me deito
para sugar o silêncio, ouvir
a
música das espigas, respirar
a doçura escuríssima das silvas.
Corpo de mil bocas,
e todas fulvas de alegria,
todas para sorver,
todas para morder até que um grito irrompa das
entranhas
e
suba às torres,
e suplique um punhal.
Corpo para entregar às lágrimas.
Corpo para morrer.
Corpo para beber até ao fim – meu oceano breve
e branco,
minha secreta embarcação, meu vento favorável,
minha vária e sempre incerta navegação.
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18.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tinha um cravo no meu balcão:
Veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?
Sentada, bordava um lenço de mão
Veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço,
Só não dei o coração;
Mas se o rapaz mo pedir
– mãe, dou-lho ou não?
Em “Primeiros Poemas”
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21.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
o mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.
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03.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
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01.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
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12.05.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar
TRÊS NEGATIVOS E UMA DISSONÂNCIA PARA EUGÉNIO DE ANDRADE
Não era o pampilho.
Mas ao acaso o poeta chama os amarelos da tarde, entre o silvo de dois
aviões, e o destino se cumpre das coisas. De todos, só ele ousará semear, frágeis assim de nome e de espécie,
minúsculas manchas de alegria no mais branco de seus cadernos.
Não trago ainda «A Vida das Abelhas».
Que mais fácil, pergunto, será o esquecer do que fazem em Maeterlinck
quantos enxames, que sentido têm seus sentidos? Leva-se o dia ocupado em descobrir da outra, da pequena vagabunda
italiana, a secreta receita para o fabrico do mel.
Não o de Domingos Peres das Eiras.
Através dele o rosto vem do poeta, erguido para a cidade essa que é uma
coroa dorida de navios encalhados. Já rio nenhum separa os dois rostos.
A voz a voz se juntou, e aos assaltantes um desafio apenas lançado: «Na cidade se está, se é. E nem mesmo o poema, por violento e de sangue,
detém a nortada de abril, o poeta, seu mês.»
Estas, as palavras, por aqui resvalam até o pó, pois que pó é o pó ou a luz?
Da cal de Tavira à bruma de agora encharcadas: insubmissas, ternas como
os animais de fogo. Um grito se pedia, nem de pomba nem de cabra, para que de palavra fosse,
sal da efémera palavra. E aí ficava também, nos versos do poeta. Quer dizer, neste tempo que temos: tão de fulgor, tão escasso.
Poema de Mário Cláudio, ilustração de Alfredo Luz, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
23.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.
Que música escutas tão atentamente que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
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12.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Na cidade velha do Porto,
no primeiro andar de um restaurante,
a uma mesa de janela,
estava eu com o poeta português Andrade,
um homem seco com gestos de adolescente.
Comíamos tripas e bebíamos o vinho da sua terra
e falávamos um tanto timidamente
das literaturas dos nossos países e da França,
voltando sempre à revolução perdida,
enquanto lá em baixo brincavam os filhos dos pobres
e bolas de sabão voavam pela rua,
bola a bola passando pela nossa janela
e voltando sempre, a correr
contra o céu azul
até se desfazerem contra os muros
sombrios das casas.
[Tradução do alemão por João Barrento]
Poema de Wolfgang Bachler, ilustração de Jorge Pinheiro, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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10.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Da luz refém
como Antinoos cada noite
assim chorou
em Delphos
pelo demorado dia
Poema de Virgílio Alberto Vieira ilustração de Júlio Resende, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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08.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra,
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no
lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos
do silêncio, seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias
que ele havia de dizer por palavras no papel,
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.
era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam
a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia,
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.
Poema de Vasco Graça Moura, ilustração de Alberto Péssimo, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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06.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Criam as mãos os frutos e recolhem-nos –
Pousam na terra o ovo da ternura
Regam com riso e chuva e sol e lua
Com a paixão aquecem iluminam
Irradiante o caule rasga o perímetro
Abre-se em asa tinge-se de esperança
Revela então o coração da planta
Na flor da aliança o arco-lírio
E fecunda-se o rubro em ouro de alma
Em pomo em pedra em obra em plenitude
Da semente onde o tempo se confunde
E ternamente rola e ruge e canta –
Criam as mãos os frutos e deslumbram-se
Vertendo noutras mãos o rio de chama
Poema de Teresa Balté, ilustração de Álvaro Siza, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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06.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
“Madrigal tão engraçadinho”, para Eugénio de Andrade
A tua poesia não sua,
É líquida, confessa.
Não treme, nem tropeça.
A tua poesia é um eco da lua.
Modula na cabeça.
É uma estátua de pedra
Nua.
Poeta!
Quero bem à tua poesia.
Poema de Ruy Cinatti, ilustração de Carlos Marreiros, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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05.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tarde de Poesia. A Eugénio de Andrade
Estás sentado diante de nós
e o teu corpo soletra o amor
como um deus que não tem memória
e por isso não esquece, nem pode ser menos
do que é. As coisas e o nome que lhes deste
somam uma vida e nada divide ou subtrai
a melodia. Olho para ti com palavras que
tinha perdido e estão todas no teu corpo
a abrir quando estamos pobres e nos dão
ouvidos para a tua voz. A cadeira do tempo
está vazia. Tu preservas até o nome que
foi dado ao ar em que respiraste um amor antigo
ou o último adeus e por isso estás inteiro diante
de nós e é como se pedíssemos que guardes
o que perdemos todos os dias. Na tua voz
as coisas regressam e dói quando a luz
lhes bate nos olhos porque expulsámos a dor
do paraíso. Estás sentado diante de nós
e guardas os afectos que deitámos fora,
distraídos a separar o trigo do joio.
Terça, 15 de Fevereiro de 2000
Poema de Rosa Alice Branco, ilustração de Carlos Marreiros, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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03.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ao café de S. Paulo, quantas vezes,
Outrora fui buscar-te!
Sentíamo-nos ambos portugueses
E ocidentais, em arte.
Do Jardim de S. Lázaro chegava
Um apelo de tília e de açucena
E aquele aroma, cálido, embalava
A carne, loira num, no outro, morena.
Roma, Londres, Paris (talvez Nínive…)
Cercavam-nos então.
E aquelas ilusões
que nunca tive
Poisavam-me na mão…
Ó lucidez da nossa inconsciência!
Voz que, no azul do ar, se diluía…
– Eugénio? – Pedro. (Eugénio – a inteligência;
Pedro – o instinto).
E despontava o dia!
Teus versos eram, sempre, madrugada
Diáfana, tão pura!
E eu dizia-te adeus, de alma lavada,
Mergulhando, depois, na noite escura…
Poema de Pedro Homem de Melo, ilustração de Artur Bual, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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01.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Aprendíamos a amar, aprendíamos/a morrer
É no verão que se aprende a poesia,
disseste; e em cada um dos verões que a vida
nos traz, em que se aprende e desaprende
o mais certo, entre o amor e a morte,
que cada um tem de saber. No quintal,
onde já não existe a romãzeira da infância,
ouvindo o vento que sobe da terra, trazendo
um antigo furor de ervas e raízes; ou
no largo aberto para o tempo que foi,
e esse que há-de vir. Abro contigo o livro
branco de todos os lugares e de todos
os nomes: o livro da poesia, aprendida
com o desfolhar dos verões, enquanto
as mães se despedem da vida, e uma baça
adolescência se confunde com a névoa
de agosto. Leio devagar, como se
interpretasse, e um fogo embarcado
nos olhos enfunasse a mais obscura
das imaginações: o verso, aprendido
no leito da memória, no verão em
que se aprende a poesia, disseste.
paris, l-XI-99
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01.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Três negativos e uma dissonância para Eugénio de Andrade
Não era o pampilho.
Mas ao acaso o poeta chama os amarelos da tarde, entre o silvo de dois
aviões, e o destino se cumpre das coisas. De todos, só ele ousará semear, frágeis assim de nome e de espécie,
minúsculas manchas de alegria no mais branco de seus cadernos.
Não trago ainda «A Vida das Abelhas».
Que mais fácil, pergunto, será o esquecer do que fazem em Maeterlinck
quantos enxames, que sentido têm seus sentidos? Leva-se o dia ocupado em descobrir da outra, da pequena vagabunda
italiana, a secreta receita para o fabrico do mel.
Não o de Domingos Peres das Eiras.
Através dele o rosto vem do poeta, erguido para a cidade essa que é uma
coroa dorida de navios encalhados. Já rio nenhum separa os dois rostos.
A voz a voz se juntou, e aos assaltantes um desafio apenas lançado: «Na cidade se está, se é. E nem mesmo o poema, por violento e de sangue,
detém a nortada de abril, o poeta, seu mês.»
Estas, as palavras, por aqui resvalam até o pó, pois que pó é o pó ou a luz?
Da cal de Tavira à bruma de agora encharcadas: insubmissas, ternas como
os animais de fogo. Um grito se pedia, nem de pomba nem de cabra, para que de palavra fosse,
sal da efémera palavra. E aí ficava também, nos versos do poeta. Quer dizer, neste tempo que temos: tão de fulgor, tão escasso.
Poema de Mário Cláudio, ilustração de Alfredo Luz, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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21.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
No sítio mais fundo
do teu nome
fala o que não se pode dizer.
Que ninguém chame pelo teu nome,
que ninguém acorde o teu nome que
dorme.
Porque é o nome do homem
e o do menino,
o da vítima e o do assassino.
Poema de Manuel António Pina, ilustração de Emerenciano, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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14.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Há em Eugénio de Andrade
uma tensão extrema
substantivos e verbos trazem os elementos
respiração da terra no poema
a vida intensa a breve eternidade
e as sílabas do sul entre o verão e os ventos
Poema de Manuel Alegre, ilustração de Fernando Lanhas, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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11.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
A Eugénio de Andrade depois de ler “Os lugares do Lume”
Entre os lugares do lume acontecia que
a tua voz as músicas movia
e era outra paisagem de repente a
levantar-se como sarça ardente,
como se os prisioneiros da linguagem se
tornassem só lume, só passagem
e na terra que foi melancolia
ardesse a voz inteira da poesia.
(Mas nos lugares do lume que disseste
um pur si muove brilha e aparece.)
Poema de Luís Filipe Casreo Mendes, ilustração de Francisco Simões, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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10.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
… quanto mais envelheço, mais pueril é a luz mas essa vai comigo.
Nesses dias distantes eu vagueava pelas matas
enchia a espingarda de chumbo e disparava
contra o silêncio das árvores altas
só para assistir ao espectáculo dos pássaros em debandada
experimentava uma exaltação—de que tenho hoje pudor
perante imagens que partem:
fragmentos rápidos, passagens, segredos que se apagam
nesses dias distantes nem suspeitava
a vida pode ser interminável
o que deixaste abandonado regressa aprende-se depois
quando, por exemplo, a esquecida infância se parece com
certos cães deixados de propósito a muitos quilómetros que
ladram não se percebe como à porta da velha casa
Poema de José Tolentino Mendonça, ilustração de Jorge Ulisses, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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08.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
A Eugénio de Andrade, agradecendo “Até Amanhã”
Lembras-te da primeira vigília que fizeste,
à espera, trémulo, da madrugada nova?
Deu o meio-dia, tilintava o oiro, e
anoiteceu-nos como se a nossa amada
fosse a descer à cova.
Depois, tu esperaste sempre a
madrugada, mas sempre a noite paria
nados-mortos, sempre a esperança
espancada cada dia: frágil, de luz e de
cristal, a tua fé embaciou-se de
melancolia…
Mas tu esperas ainda – porque os
teus versos ainda são os do rapaz
maravilhado pela afogueada cor
duma romã.
E vem dele a saúde a quem se cruza
contigo, no branco litoral: «Até
amanhã».
Poema de José Fernandes Fafe, ilustração de Mário Botas, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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07.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Para um barco moliceiro e para Eugénio de Andrade
É a hora que não consente sombras.
Dardos procuram o teu dorso, ou labaredas. Tudo
conheces da água, mas a sede é a corrente
insone que te fere e te impele.
Persistes em singrar, embora só: tua imagem não a
encontro senão em teu próprio reflexo. Porém, não
crias nunca solidão nem carência: quem te olha
decifra o esplendor do azul secreto.
Que destino, ser barco!: escrever ao magoar as
ondas com o sangue que sobre ti é o vento,
sabendo que as palavras agonizam nas sílabas
apenas brotam, e a espuma é o seu eco.
Uma noite extenuada, rente a um juncal ou um rosto,
já só tronco insubmisso, hás-de apagar-te, lento. Mas
em teu cerne o fogo que hoje te persegue continuará
a doer-nos, puríssimo, desperto.
Poema de José Bento, ilustração de José Rodrigues, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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04.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Trouxe-te um ramo de frésias (não
eram essas as flores dos jardins de
Castelo Branco?)
embrulhadas em celofane por causa do
frio Trouxe-te um ramo de frésias já
que não te podia trazer um rio
Primavera 84
Poema de Jorge de Sousa Braga, ilustração de Jorge Martins, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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03.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Esta água vesperal que sobe em ti
e escorre em regos por areias campos
de verde negro crespas cabeleiras
levando flores vai e estrias brancas
do que tão chamas cal no ardor de tê-las.
Rumor de secos ramos e de olhares,
visões que os dedos têm tocando os troncos
e os caules duros por momentos longos,
correndo vai essa água transportando-os
a um mar que ondas recurva silenciosas.
Descendo pelo tempo que o desejo
anseia seja uma demora tensa
ante um passado a dissolver-se agudo –
essa água véspera de ser-se é tarde
pousando na paisagem das palavras.
Silêncio de só gestos que elas dizem
menos que dizem lembram ou contentam
na solidão sem rosto da nudez –
esta água corre escorre pedra em pedras
e sobe em ti como ervas sobre a terra
em que ninguém nos fita ou já nos vê.
Poema de Jorge de Sena, ilustração de Júlio Resende, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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02.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Outrora várias vezes versos esperei
onde ficava fechada a amizade e vinham
num jogo de acalmia os instrumentos
de desenhar esse grão de penumbra. Enquanto
a casa e o corpo me protegiam.
Hoje tenho esta certeza de dizer-lhe
que nem a poesia é uma casa, nem faz senão
expor-nos ao banal num corpo já
entregue a bisturis, apenas o espera cada
cinza.
A claridade a que tento escrever-lhe
é tumefacta como um órgão ferido,
está sujeita numa cortina suja
e é à salgação da morte
que na janela adormecem os contornos.
Passámos na vida pelas nossas vidas
e, sabe que é raro, tudo esteve certo.
Agora é esperar o canto enfermo,
o banimento,
nem um abraço ficará
de nenhum de nada de nós.
Talvez nessa altura fogos presos nos
acendam em barcos as palavras,
estrondos surdos de luz cruzem a água
diante da qual por algum tempo a mão de
alguém fará lembrar esses focos da noite,
esquivos, impossíveis de tocar.
E nessas brasas de tanta cor outros
escutam o desaparecimento.
Poema de Joaquim Manuel Guimarães, ilustração de Gustavo Matos, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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30.11.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Naufrágio que le Prince Charmant sofreu ao tempo do
Livro de Navegações de São Brandão.
Procura ainda a vida que
podes viver quando reflecte
da floresta a sombria folha
que
no primeiro capítulo foi perdida.
Procura a proporção do que
cresce dentro e fora da casa –
o corpo,
no seu existir dia a dia
similiter tui domine
deus. Procura
a vibração do mar e da terra e
desce
na cavidade medida
o mais profundo golpe.
[Para Eugénio, o único poema que escrevi em 1999]
Poema de João Miguel Fernandes Jorge, ilustração de José Rodrigues, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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27.11.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Intensamente te leio e reconheço
esplendor que me religa
para sempre aos teus olhos, adâmicos
e indemnes à usura
das palavras do mundo. Nessa nudez
celebras a fuga
de um corcel travestido de cinzas
no rito do poema nascido.
Poema de Inês Lourenço, ilustração de Armando Alves, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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25.11.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Escutamos o Porto: os passos dados sobre lajes; vozes soltas, feridas; falas num português perdido.
Descemos da Sé para a Ribeira. Essas mulheres que gritam estão vivendo entre pedras ainda. Caminhamos no lixo. Vamos atentos à solidão das pedras, à forma destas casas que deveriam estar apodrecidas. A redução da luz conserva as suas tintas, embora mortas, vivas. Cores indecifráveis, vermelhos espessos, obscurecidos. Amparam cheiros fétidos, penumbras. E o rio resume tudo isto: mulheres lavam na água destruída: roupa, sabão e cascas de laranja; em torno, a água grande, verde e íntima.
Agua estreita, granito, como a Vila. Na Rua de Cimo de Vila começamos o caminho de Domingos Peres das Eiras. É esse o nome, o verdadeiro nome de Eugénio de Andrade? Que nos conduz na sordidez e no esplendor da Vila. Tu duca, tu segnore, e tu maestro.
Sem culto, a Igreja de São Francisco é uma gruta de talha onde se deslocam aves, as mesmas que Eugénio de Andrade vê junto ao cais, sobre barcaças negras. Depois, aquele muro branco, dele e de José Rodrigues, diverso dos muros brancos do sul, escuro, parede de uma rua onde vozes de crianças – tão exteriores ou interiores a nós, que são repentinamente as de William Blake – jogam.
E ao teu encontro vem
a grande ponte sobre o rio.
É de noite, de facto, mas não estás só. O frio sobe do Douro, a cidade expõe as suas luzes. Escutamo-nos.
Poema de Gastão Cruz, , ilustração de José Rodrigues, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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21.11.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
… Os meus olhos, o espírito e as mãos
pegam em cada imagem de uma flor,
em cada dia de visão e ganho. Mas a
perda, enfim, virá somar tudo igual a
si mesmo, uno, passado. E, de
repente, uma flor de palavras muito
branca chega até mim, e é esta
estação, nesse florir de goivos. Uma
carta traz-me inscrita as palavras de
Eugénio, goivos, e o seu eflúvio. Esta
transcreve-a ele de Pessanha, diante
de tão nítidos canteiros. Grata,
prendo-me a esses elos vivos da
corrente de vozes, que se oferecem aos
ouvintes, depois de recolherem o real,
o findo, o que foi amado. […]
Poema de Fiama Hasse Pais Brandão, ilustração de Lagoa Henriques, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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20.11.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
São coisas muito frágeis – uma sede
a transformar-se em água ou num sorriso
aberto à flor dos lábios,
a música de um corpo enquanto é verão
e sobretudo a chama de um olhar
que se entrega à primeira alegria,π
ao primeiro desejo.
Ele sabe, sempre soube que é difícil ser
fiel ao esplendor de tudo isso, à
melodia ou ao rumor do sangue. É um
segredo roubado à terra ou à infância
como se a voz dançasse.
Confidente das aves quando chegam
do sul
ou cúmplice da luz que se demora
à passagem do vento,
mal o vejo daqui
e a sombra que se move entre os seus olhos
é a lição do dia quando morre,
esse rasto de lume que o sol deixa
a arder no mar.
Poema de Fernando Pinto do Amaral, busto de José Rodrigues, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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