“Corpo Habitado”, poema de Eugénio de Andrade.
11.07.2022
Corpo num horizonte de água, corpo aberto
à lenta embriaguez dos dedos, corpo defendido pelo
fulgor das maçãs,
rendido de colina em colina, corpo amorosamente
humedecido pelo sol dócil da língua.
Corpo com gosto a erva rasa de secreto jardim,
corpo onde entro em casa, corpo onde me deito
para sugar o silêncio, ouvir
a
música das espigas, respirar
a doçura escuríssima das silvas.
Corpo de mil bocas,
e todas fulvas de alegria,
todas para sorver,
todas para morder até que um grito irrompa das
entranhas
e
suba às torres,
e suplique um punhal.
Corpo para entregar às lágrimas.
Corpo para morrer.
Corpo para beber até ao fim – meu oceano breve
e branco,
minha secreta embarcação, meu vento favorável,
minha vária e sempre incerta navegação.
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