Nota biográfica

José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, 25 de Fevereiro de 1855 — Lumiar, 19 de Julho de 1886) foi um poeta português, sendo considerado um dos precursores da poesia que seria feita em Portugal no século XX.

“Árvores do Alentejo”, poema de Cesário Verde.

12.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Horas mortas … Curvada aos pés do Monte

A planície é um brasido … e, torturadas,

As árvores sangrentas, revoltadas,

Gritam a Deus a bênção de uma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,

Esfíngicas, recortam desgrenhadas

Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores, corações, almas que choram,

Almas iguais à minha, almas que imploram

Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:

Também ando a gritar, morta de sede,

Pedindo a Deus a minha gota de água!

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“Lágrimas” de Cesário Verde.

07.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ela chorava muito e muito, aos cantos,

Frenética, com gestos desabridos;

Nos cabelos, em ânsias desprendidos, 

Brilhavam como pérolas os prantos.

Ele, o amante, sereno como os santos,

Deitado no sofá, pés aquecidos,

Ao sentir-lhe os soluços consumidos,

Sorria-se cantando alegres cantos.

E dizia-lhe então, de olhos enxutos:

— Tu pareces nascida de rajada, 

Tens despeitos raivosos, resolutos;

Chora, chora, mulher arrenegada;

Lacrimeja por esses aquedutos…

Quero um banho tomar d’água salgada.

Porto, Diário da Tarde, 21 de Janeiro de 1874

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“Heroísmos”, poema de Cesário Verde.

18.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu temo muito o mar, o mar enorme, 

Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;

O mar sublime, o mar que nunca dorme.


Eu temo o largo mar, rebelde, informe, 

De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.


Contudo, num barquinho transparente, 

No ser dorso feroz vou blasonar,

Tufada a vela e nágua quase assente,

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,

Escarro, com desdém, no grande mar!

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“Num álbum”, poema de Cesário Verde.

01.04.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

I
És uma tentadora: o seu olhar amável
Contém perfeitamente um poço de maldade,
E o colo que te ondula, o colo inexorável
Não sabe o que é paixão, e ignora o que é bondade.
II
Quando me julgas preso a eróticas cadeias

Radia-te na fronte o céu das alvoradas,
E quando choro então é quando garganteias

As óperas de Verdi e as árias estimadas.
III
Mas eu hei-de afinal seguir-te a toda a parte,
E um dia quando eu for a sombra dos teus passos, 

Tantos crimes terás, que eu hei de processar-te,
E enfim hás de morrer na forca dos meus braços.

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“A forca”, poema de Cesário Verde.

14.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Já que adorar-me dizes que não podes, 

Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é peito dum Herodes,

Eu antes que encaneçam meus bigodes 

Ao meu mister de ama-te hei-de pôr meta,

O coração mo diz – feroz profeta,
Que anões faz dos colossos lá de Rodes.


E a vida depurada no cadinho 

Das eróticas dores do alvoroço,

Acabará na forca, num azinho,


Mas o que há-de apertar o meu pescoço 

Em lugar de ser corda de bom linho 

Será do teu cabelo um menos grosso.


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“Noites Gélidas”, poema de Cesário Verde.

13.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,

Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada, 

Mais alva que o luar de Inverno que me esfria,

Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,

Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,

Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia

De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.

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“Vaidosa”, poema de Cesario Verde.

02.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.

Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.

E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.

Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loura e dourada como as messes

E possuis muito amor… muito amor-próprio.

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“Heroísmos” de Cesario Verde.

30.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n’água quase assente

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

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Cesário Verde – “De tarde”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.

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Cesário Verde – “Deslumbramentos”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Milady, é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, senguindo-lhes as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!x

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascinax
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!x

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, milady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais;
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos – as rainhas!

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Cesário Verde – “Débil”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te , sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te há pouco, fraca e loura
Nesta BabeI tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tomas prestante, bom, saudável.
«Ela aí vem!» , disse eu para os demais;
E pus,me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava – talvez que o não suspeites!
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
la passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía,me a cabeça;
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.
Adorável! Tu muito natural
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
Sorriam nos seus trens os titulares;
E ao claro sol guardava-te, no entanto ,
A tua boa mãe, que te ama tanto,
Que não te morrerá sem te casares!
Soberbo dia! Impunha-me respeito
A limpidez do teu semblante grego;
E uma família, um ninho de sossego ,
Desejava beijar sobre o teu peito.
Com elegância e sem ostentação,
Atravessavas, branca, esbelta e fina,
Uma chusma de padres de batina
E de altos funcionários da nação.
“Mas se a atropela o povo turbulento!
Se fosse, por acaso, ali pisada!”
De repente, paraste embaraçada
Ao pé dum numeroso ajuntamento.
E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Um pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.
E foi,então, que eu, homem varonil,
Quis dedica-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu, que sou hábil, prático, viril.

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Cesário Verde – “Cinismos”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar-lhe a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!

E eu hei-de, então, soltar uma risada.

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Cesário Verde – “Desastre”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito,
Soltando fundos ais e trémulos queixumes;
Caíra dum andaime e dera com o peito,
Pesada e secamente, em cima duns tapumes.
A brisa que balouça as árvores das praças,
Como uma mãe erguia ao leito os cortinados,
E dentro eu divisei o ungido das desgraças,
Trazendo em sangue negro os membros ensopados.
Um preto, que sustinha o peso dum varal,
Chorava ao murmurar-lhe: “Homem não desfaleça!”
E um lenço esfarrapado em volta da cabeça
Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.
Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,
Corriam char-à-bancs cheios de passageiros
E ouviam-se canções e estalos de chicotes,
Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.
Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta,
A rir e a conversar numa cervejaria,
Gritava para alguns: “Que cena tão faceta!
Reparem! Que episódio!” Ele já não gemia.
Findara honradamente. As lutas, afinal,
Deixavam repousar essa criança escrava,
E a gente da província, atónita, exclamava:
“Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!”
Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos;
Mornas essências vêm duma perfumaria,
E cheira a peixe frito um armazém de vinhos,
Numa travessa escura em que não entra o dia!
Um fidalgote brada a duas prostitutas:
“Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!”
Bisonhos, devagar, passeiam recrutas
E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.
Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer,
De bagas de suor tinha uma vida cheia;
Levava a um quarto andar cochos de cal e areia,
Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.
Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco,
Sentira a exalação da tarde abafadiça;
Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco
E o fato remendado e sujo da caliça.
Gastara o seu salário – oito vinténs ou menos-,
Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda!
“Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!”
E estremeceu, rolou nas atracções da queda.
O mísero a doença, as privações cruéis
Soubera repelir – ataques desumanos!
Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos
Andara a apregoar diários de dez-réis.
Anoitecia então. O féretro sinistro
Cruzou com um coupé seguido dum correio,
E um democrata disse: “Aonde irás, ministro!
Comprar um eleitor? Adormecer num seio?”
E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro,
– Conservador, que esmaga o povo com impostos-,
Mandava arremessar – que gozo! estar solteiro!
Os filhos naturais à roda dos expostos …
Mas não, não pode ser… Deite-se um grande véu …
De resto, a dignidade e a corrupção … que sonhos!
Todos os figurões cortejam-no risonhos
E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.
E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa,
Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:
Isto porque o patrão negou-lhes a licença,
O Inverno estava à porta e as obras atrasadas.
E antes, ao soletrar a narração do facto,
Vinda numa local hipócrita e ligeira,
Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:
“Morreu! Pois não caísse! Alguma bebedeira!”

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