Nota biográfica

José Carlos Pereira Ary dos Santos (Lisboa, 7 de Dezembro de 1937 — Lisboa, 18 de Janeiro de 1984) foi um publicitário, poeta e declamador português.

“Na mesa do Santo Ofício”, poema de Ary dos Santos.

01.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.

Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.

Que viemos, amámos, pecámos e partimos 

Como a água das chuvas.

Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam

E que a nossa aventura,

E no vento que passa que a ouvimos, 

E no nosso silêncio que perdura.

Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos

E que enterrámos vivo o fogo que nos queima. 

Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,

Que nos espreguiçaremos na fogueira.

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“Nona Sinfonia”, poema de Ary dos Santos

18.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.

Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.

Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.

Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.

Ary dos Santos, in ‘O Sangue das Palavras’

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“Viagem”, poema de Ary dos Santos.

17.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Persegue-me na noite a voz do impossível,
Rebentam-me aos ouvidos as ampolas de sangue.
Avanço devagar para a hidra intangível

Que dorme no horizonte do lado do levante.

Fascinam-me o mistério do seu rosto sem nome,

O muro de silêncio que a separa de mim,

A jornada no escuro, os perigos, os escombros, 

As barreiras de sombra a que vou pondo fim.

Avanço devagar para a hidra que dorme

O seu sono latente na véspera de mim.

E percorro países como esqueço palavras 

E atravesso rios como desprezo leis

E pairo nas alturas com as costas voltadas 

Aos séculos de pasmo que para trás deixei.

Avanço devagar para a hidra que dorme

O seu sono de pedra num abismo sem fundo.

É a hora em que a terra não gira,

Em que o vento não corre.

É o tempo do homem descobrir o mundo.

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“Estigma”, de Ary dos Santos.

12.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Filhos dum deus selvagem e secreto

E cobertos de lama, caminhamos Por cidades,

Por nuvens 

E desertos.

Ao vento semeamos

O que os homens não querem.

Ao vento arremessamos

As verdades que doem

E as palavras que ferem.

Da noite que nos gera, e nós amamos, 

Só os astros trazemos.

A treva ficou onde

Todos guardamos a certeza oculta

Do que nós não dizemos.

Mas que somos.

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“Desespero”, poema de José Carlos Ary dos Santos

10.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti


Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.


Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu


A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o esperma que te dou, o desespero.

em ‘Liturgia do Sangue’

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“O futuro”, poema de Ary dos Santos.

01.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.

In “O sangue das palavras” 1979

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“Retrato do Herói” poema de Ary dos Santos.

11.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.


Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.


Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.


Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.


em ‘Fotosgrafias’


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Ary dos Santos – “Kyrie”

02.06.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!

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Ary dos Santos – “Os bonzinhos e os malvados”

14.03.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dum lado os bonzinhos
com o seu ar sisudo
andando aos passinhos
dentro do veludo.

Do outro os malvados
cabelos ao vento
de fatos coçados
por bom e mau tempo.

Dum lado os bonzinhos
gordinhos, gulosos
comendo pratinhos
muito apetitosos.

Do outro os malvados
a ferrar o dente
em grandes bocados
de chouriço ardente.

Dum lado os bonzinhos
com muito cuidado
a dar beijinhos
com dia aprazado.

Do outro os malvados
a fazer amor
sem dias marcados
com frio ou calor.

Dum lado os bonzinhos
muito estudiosos
dizendo versinhos
em salões ranhosos.

Do outro os malvados
gritando na rua
que os braços estão dados
que a esperança está nua.

Dum lado os bonzinhos
metidos na cama
tomando chazinhos
molhando o pijama.

Do outro os malvados
os que dormem nus
sonhando acordados
com feixes de luz.

Dum lado os bonzinhos
batendo nos tectos
sempre que os vizinhos
são mais incorrectos.

Do outro os malvados
que fazem barulho
despreocupados
ao som do vasculho.

Teremos por certo
os gostos trocados
detesto os bonzinhos
adoro os malvados.

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Ary dos Santos – “Infância”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não minha mãe. Não era ali que estava. 

Talvez noutra gaveta. Noutro quarto. 

Talvez dentro de mim que me apertava 

contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava 

talhada no teu ventre de alabastro

abria-se fechava dilatava.

Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala

nem nenhum dos retratos de família 

nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala… 

… o meu berço enfeitado a buganvília… 

Tenho tantas saudades, minha mãe!

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Ary dos Santos – “Memória de Adriano”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nas tuas mãos tomaste uma guitarra 

copo de vinho de alegria sã 

sangria de suor e de cigarra 

que à noite canta a festa de amanhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra

o que à terra chamou amante e irmã 

mas também português que investe e marra 

voz de alaúde rosto de maçã.

O teu coração de ouro veio do Douro 

num barco de vindimas de cantigas 

tão generoso como a liberdade.

Resta de ti a ilha dum tesouro

a jóia com as pedras mais antigas.

Não é saudade, não! É amizade.

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Ary dos Santos – “Telegrama para Gomes Leal”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tia Maria Poesia a acabar. 

Stop. Vem depressa. Testamento incerto. 

É certo que não tinha que deixar

mais que um saldo no banco a descoberto.

Anda a crítica toda a farejar.

Os enteados rondam muito perto.

Volta depressa ó meu. O teu lugar 

é aqui ajudando neste aperto.

Toma a carreira Inferno-Portugal.

Fizeste-a tantas vezes! E a viagem 

agora de caixão é mais barata.

Vem-me ajudar a consolar a tia. 

A Natália está lá. Não a Sofia

Cara-de-cu que sempre foi ingrata.

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Ary dos Santos – “Soneto de Inês”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dos olhos corre a água do Mondego

Os cabelos parecem os choupais 

Inês! Inês! Rainha sem sossego 

dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego 

Amor que torna os homens imortais.

Inês! Inês! Distância a que não chego

Morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes os teus braços 

são gaivotas pousadas no regaço

dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos

e tu morrendo com os olhos baços. 

Inês! Inês! Inês de Portugal.

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Ary dos Santos – “Sonata de Outono”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Inverno não ainda mas Outono

a sonata que bate no meu peito

Poeta distraído cão sem dono

até na própria cama em que me deito.

Acordar é a forma de ter sono

O presente o pretérito imperfeito

Mesmo eu de mim me abandono 

se o vigor que me devo não respeito.

Morro de pé, mas morro devagar.

A vida é afinal o meu lugar 

e só acaba quando eu quiser.

Não me deixo ficar. Não pode ser.

Peço meças ao Sol, ao Céu, ao Mar

Pois viver é também acontecer.

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Ary dos Santos – “Poesia-orgasmo”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

De sílabas de letras de fonemas 

se faz a escrita. Não se faz um verso. 

Tem de correr no corpo dos poemas 

o sangue das artérias do universo.

Cada palavra há-de ser um grito 

um murmúrio um gemido uma erecção

que transporte do humano ao infinito 

a dor o fogo a flor a vibração

A Poesia é de mel ou de cicuta? 

Quando um poeta se interroga e escuta

ouve ternura luta espanto ou espasmo?

Ouve como quiser seja o que for

Fazer poemas é escrever amor

e poesia o que tem de ser é orgasmo.

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Ary dos Santos – “Insónia”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

As noites — escorpiões suicidados

Com o seu próprio veneno nas entranhas 

ressuscitam depois em madrugadas 

cada vez mais azuis e mais estranhas.

São insónias tecendo alucinadas 

uma teia de horas e de aranhas 

patas tácteis peludas eriçadas 

com o peso latente das montanhas.

E por dentro dos olhos um perfil 

de ferro e fogo deixa-nos queimados 

selados como a chuva e como o vento.

Será possível que depois de Abril 

ainda adormeçamos acordados 

neste país-raiz de sofrimento?

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Ary dos Santos – “Ao meu falecido irmão, Manuel Maria Barbosa du Bocage”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Meu sacana de versos! Meu vadio.

Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.

Lisboa é uma sarjeta. E um vazio.

E é raro o poeta que entre nós faz escola.

Mastigam ruminando o desafio.

São uns merdosos que nos pedem esmola.

Aos vinte anos cheiram a bafio

têm joanetes culturais na tola.

Que diria Camões, nosso padrinho 

ou o Primo Fernando que acarinho 

como Pessoa viva à cabeceira?

O que me vale é que não estou sozinho

ainda se encontram alguns pés de linho 

crescendo não sei como na estrumeira!

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Ary dos Santos – “Cantiga de Amigo”

17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões, Virgílio, Shelley, Dante
o meu amigo está longe e a distância é bastante.
Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões, Virgílio, Shelley, Dante!
o meu amigo está longe e a tristeza é bastante.
Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões, Virgílio, Shelley, Dante:
o meu amigo está longe e a saudade é bastante!

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Ary dos Santos – “Quando um Homem quiser”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitos de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e comboios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

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Ary dos Santos – “Tourada”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.
Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.

Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo…

Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.

E diz o inteligente
que acabaram asa canções.

Nota:
Musica de Fernando Tordo. Escrito no final de 1972. Interpretada por Fernando Tordo, concorreu ao Festival da RTP de 1973 onde obteve o 1º lugar. Interpretado por Fernando Tordo no disco TECLA TE 20060.

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Ary dos Santos – “Menina”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Menina de olhar sereno
raiando pela manhã
de seio duro e pequeno
num coletinho de lã,
Menina cheirando a feno
casado com hortelã
 
Menina que no caminho
vais pisando formosura
levas nos olhos um ninho
todo em penas de ternura.
Menina de andar de linho
com um ribeiro à cintura.
 
Menina de saia  aos folhos
Quem te vê fica lavado
água da  sede dos olhos
Pão que não foi amassado
 
Menina do riso aos molhos
minha seiva de pinheiro
menina de saia aos folhos
alfazema sem canteiro.

                                       
Menina de corpo inteiro
com tranças de madrugada
que se levanta primeiro
do que a terra alvoroçada

 
Menina de fato novo
ave-maria da terra
rosa brava, rosa povo
brisa do alto da serra

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Ary dos Santos – “Homem na cidade”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Agarro a madrugada
como se fosse uma criança,
uma roseira entrelaçada,
uma videira de esperança.
Tal qual o corpo da cidade
que manhã cedo ensaia a dança
de quem, por força da vontade,
de trabalhar nunca se cansa.
Vou pela rua desta lua
que no meu Tejo acendo cedo,
vou por Lisboa, maré nua
que desagua no Rossio.
Eu sou o homem da cidade
que manhã cedo acorda e canta,
e, por amar a liberdade,
com a cidade se levanta.
Vou pela estrada deslumbrada
da lua cheia de Lisboa
até que a lua apaixonada
cresce na vela da canoa.
Sou a gaivota que derrota
tudo o mau tempo no mar alto.
Eu sou o homem que transporta
a maré povo em sobressalto.
E quando agarro a madrugada,
colho a manhã como uma flor
à beira mágoa desfolhada,
um malmequer azul na cor,
o malmequer da liberdade
que bem me quer como ninguém,
o malmequer desta cidade
que me quer bem, que me quer bem.
Nas minhas mãos a madrugada
abriu a flor de Abril também,
a flor sem medo perfumada
com o aroma que o mar tem,
flor de Lisboa bem amada
que mal me quis, que me quer bem.

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Ary dos Santos – “Desfolhada”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.
É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Minha raiz de pinho verde
meu céu azul tocando a serra
oh minha água e minha sede
oh mar ao sul da minha terra.

É trigo loiro
é além tejo
o meu país
neste momento
o sol o queima
o vento o beija
seara louca em movimento.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Olhos de amêndoa
cisterna escura
onde se alpendra
a desventura.
Moira escondida
moira encantada
lenda perdida
lenda encontrada.
Oh minha terra
minha aventura
casca de noz
desamparada.
Oh minha terra
minha lonjura
por mim perdida
por mim achada.

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Ary dos Santos – “Estrela da Tarde”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me aconteceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

José Carlos Ary dos Santos
Fernando Tordo
1976

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