“Dei-te o meu corpo”, poema de Maria do Rosário Pedreira.
15.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Maria do Rosário Pedreira (Lisboa, 1959) é editora e escritora. Desempenha actualmente funções de editora na QuidNovi, depois de ter passado pela Temas & Debates e pela Gradiva. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Estudos Franceses e Ingleses, pela Universidade de Lisboa em 1981, foi professora de Português e Francês durante cinco anos.
15.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Dei-te o meu corpo como quem estende
um mapa antes da viagem, para que nele
descobrisses ilhas e paraísos e aí pousasses
os dedos devagar, como fazem as aves
quando encontram o verão. Se me tivesses
tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços
como uma escarpa pronta a desabar, ou
uma cidade do litoral a definhar nas ondas.
Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
nas minhas mãos – tristes geografias,
labirintos de razões improváveis, tão curtas
linhas que a minha vida não teve tempo
senão para pressentir-se. Por isso, guardo
dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
muros e regressos – nem sequer feridas
ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,
as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.
in Poesia Reunida, Quetzal
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10.02.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar
O verão deixa-me os olhos mais lentos sobre os livros. As
tardes vão-se repetindo no terraço, onde as palavras são
pequenos lugares de memória. Estou divorciada dos
outros pelo tempo destas entrelinhas – longe de casa,
tenho sonhos que não conto a ninguém, viro devagar
a primeira página: em fevereiro, eles ainda faziam amor à
sexta-feira. De manhã, ela torrava pão e espremia laranjas
numa cozinha fria. Havia mais toalhas para lavar ao domingo,
cabelos curtos colados teimosamente ao espelho. Às vezes,
chovia e ambos liam o jornal, dentro do carro, antes de se
despedirem. Às vezes, repartiam sofregamente a infância,
postais antigos, o silêncio – nada
aconteceu entretanto. Regresso, pois, à primeira linha,
à
verdade que remexe entre as minhas mãos. Talvez os olhos
estivessem apenas desatentos sobre o livro; talvez as historias
se repitam mesmo, como as tardes passadas no terraço, longe
de casa. Aqui tenho sonhos que não conto a ninguém.
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09.02.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar
Hoje apareceu um pombo morto no
quintal. Não foi o gato, que morreu
antes dele num sábado sem sol, a não
querer já a minha mão, a não querer
colo. Fiquei cansada: houve sempre
tantas mortes na minha vida – os meus
pais, tu, a menina pendurada no meu
seio, os meus irmãos – e, como o pombo,
também estas asas já vão reclamando
voos noutros céus. Se eu
quisesse camélias brancas na minha
sepultura, como as que levei à igreja
quando nos casámos, ou arrastar para a
escuridão da terra o vago ouro das
nossas alianças; se tudo o que juntei
(e foi tão pouco) pudesse ainda ficar
com os que me faltam, dava estes dedos
deformados ao tear das palavras e
escrevia um bilhete, como as raparigas
que se envenenam por amor; e havia de
pousa-lo no peito depois de me deitar, já
lavada e vestida, para que ninguém se
desse ao trabalho, que eu conheço essa
dor. Mas partir é mesmo a minha
última vontade: tu já morreste, morreu o gato
há dias; encontrei hoje um pombo morto no
quintal e, quando o enterrar, não
haverá já nada que me prenda – vou-me
embora daqui tão só como cheguei, sem ter
deixado a ninguém o nome que me deram.
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11.09.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Na tua boca cantou subitamente uma voz. E, ao dizeres
o meu nome na rede de um abraço, o rio que outrora
bordava o campo emudeceu com as suas pedras lisas.
Então, foi possível
ouvir o vento soprar nas asas das borboletas e os
lagartos recolherem-se nos veios dos muros e o sol
ferir-se nos espinhos das roseiras.
Sobre a colina quente passou uma nuvem
e uma ave poisou, perplexa, no fio do horizonte
-
por um instante, o dia mostrou as suas pálpebras tristes;
e, na brancura cega desse entardecer, a tua mão
escorregou pela inclinação do sol e veio contar as
sombras no meu decote.
São assim as mais pequenas histórias do mundo.
(de O Canto do Vento nos Ciprestes)
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Foi sempre tão incerto o caminho até ti:
tantos meses de pedras e de espinhos, de
maus presságios, de ramos que rasgavam a
carne como forquilhas, de vozes que me
diziam que não valia a pena continuar, que
o teu olhar era já uma mentira; e o meu
coração sempre tão surdo para tudo isso,
sempre a gritar outra coisa mais alto para
que as pernas não pudessem recordar as
suas feridas, para que os pés ignorassem
as penas da viagem e avançassem todos
os dias mais um pouco, esse pouco que
era tudo para te alcançar. Foi por isso que,
ao contrário de ti, não quis dormir nessa
noite: os teus beijos ainda estavam todos
na minha boca e o desenho das tuas mãos
na minha pele. Eu sabia que adormecer
era deixar de sentir, e não queria perder os
teus gestos no meu corpo um segundo que
fosse. Então sentei-me na cama a ver-te
dormir, e sorri como nunca sorrira antes
dessa noite, sorri tanto. Mas tu falaste de
repente do meio do teu sono, estendeste o
braço na minha direcção e chamaste baixinho.
Chamaste duas vezes. Ou três. E sempre tão
baixinho. Mas nenhuma foi pelo meu nome.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses: as ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.
A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu
estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Cheguei tarde, e os que sabiam de mim
notaram que o meu corpo ja nao me
pertencia. E perguntaram. Porque ardia
a tua boca nos meus labios mais do que
a fogueira do segredo, respondi-lhes
que o ceu, afinal , era mesmo azul, e o
verao uma estaçao maior que o tempo,
e o tempo nada se o teu corpo estava
junto desse corpo que todos ja sabiam
que nao vinha comigo- e que Deus,
Deus fechava os olhos e existia. Riram
os que te tinham conhecido noutra noite
com outra pele vestida; os outros foram
para muito mais longe que o seu rosto
magoado dizer ao proprio ouvido que eu
mentia. Mas os que ainda queriam saber
de mim pediram-me que lhes contasse
quem eras, o teu nome. E eu mordi essa
boca vermelha que deixara contigo para
nao ter de dizer que nem o perguntara.”
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre – a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos – dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde esconde
os mais escondidos medos e anseios.
Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que te tenha revelado uma só vez que o queria.
Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã – as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema – como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa
que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudades de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite – porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me
a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.”
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.
Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.
Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.
Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.”
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