Nota biográfica

Nuno Rebocho (1945, Queluz, Sintra, Portugal) é um escritor e jornalista português. Participou activamente na luta contra a Estado Novo de Salazar, chegando a ser preso durante cinco anos, por motivos políticos, na cadeia do Forte de Peniche.

Nuno Rebocho – “Tu procuras…!”

23.08.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tu procuras a sementeira que alguém rasgou pois esse é o sinal
de que chegarão as asas das aves quando o sol mourejar.
Então os estampidos traduzem os homens cujas bocas se abeiram dos regatos
para tomar em mãos o sangue da carnificina e então serás
o que há-de vir no percurso dos silêncios, o mesmo percurso das tectrizes
e das borboletas que, porque voam, navegam entre as papoilas
e as estevas. E então dirás que a liberdade também se esquece
como o furor aquece a linfa. E então estarás teso
como o eucalipto que já secou a fonte.

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Nuno Rebocho – “Sovaco da cobra”

04.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

o sovaco da cobra resguarda o saco dos segredos
à mistura com a mentira dos medos: guarda o que pode
e o que sobra sacode juntamente com os dedos.
é preciso dizer que a cobra engorda aos solavancos
da ira desfeita (olá cobra imprudente –
que como o ponche se ajeita) e à espreita
espoja-se no pó da terra branca. plasma-se a luz
que na acácia se espanta.

mas os segredos – meu deus quantos enredos
se burilam no canto do lobo e eu fico
pasmado como os rochedos resistem à dor
do mar. e eu fico especado perante a tarde
que se deixa cobrar. só a cobra engrena
os desvelos de ficar por aqui preso
pelos cabelos e ser a vontade guardada
na calma tempestade da achada.

salva-me o sovaco: o suor e a canseira
de ser outra ilha de outra maneira.
de ser barco ou ser vento ou ainda avião
numa viagem carpida por dentro. ou não

ou sim. ou talvez assim

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Nuno Rebocho – “Magoadas águas”

04.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

que mágoas lava a água quando me recolho? e que seixos
mancha quando me devolvo? e que entrementes correm
nos seus leitos os rios onde me não deito? e onde endurecem
as dores que escurecem as tardes do meu corpo feito
de saudades e liberdades? e que cidades vagueiam no esconso
pranto dos alardes consumidos e eu te olho e não decido

apenas da minha parte a parte dada
para outro recomeço
e novas águas e novo endereço
para uma ansiedade iniciada
no lugar da espera.

então ouvi as lágrimas do meu abandono
— outras águas, manos, outras mágoas —
e te vi no palco dos anúncios onde distante eras:
olhei e murei-me
e então me dei sem remédio à renúncia
no encerrado porto sem farol

porque aí me deposito e sorvo
nas roladas pedras os poucos bagos
encalhados entre estragos
de tanta água despejada e tanto estorvo.

mas sobre a ribeira seca as mãos em concha
ainda anseiam a chuva: ainda mexem
no suor dos desenganos enquanto as águas
dos milagres se evaporam e apodrecem.

assim me esqueço nas coisas que não acontecem.

(Poema premiado num concurso organizado pelo bloque Porosidade Etérea)

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