Nota biográfica

João da Cruz e Sousa nasceu em 1861 no Desterro (hoje Florianópolis), no Brasil, filho de um mestre pedreiro, e de uma lavadeira, ambos negros e escravos, cujos senhores acolheram João da Cruz como o filho que não conseguiram ter. Em 1871 matriculou-se no Ateneu Provincial Catarinense, onde estudou francês, inglês, latim, grego, matemática e ciências naturais. Cruz e Sousa faleceu em 19 de Março de 1898, na cidade de Sítio (Estado de Minas Gerais), para onde partira na tentativa de recuperar de uma tuberculose. 

Cruz e Sousa – “Naufrágios”

22.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

I
O Mar! O mar! Quem nunca viajasse…
Quem nunca dentre dúvidas sentisse
O coração e aí, nunca embarcasse…
Oh! quem do mar as cóleras punisse!

Ora o mar e sereno, e calmo, e manso,
As vagas são melódicos arpejos
Dando à embarcação leve balanço,
Como um afago maternal de beijos.

Ora o mar franco, livre e transparente,
Tão tranquilo que está, tão brando, rindo,
Que até parece, que até cuida a gente
Que os corações podem boiar, dormindo.

Ora ferve, rebenta, estoura, estala,
Rude, feroz, em convulsões; profundo,
Abrindo a corpos pavorosa vala
E mundos de agonia num só mundo!

II
Filho! Filho! Adeus, querido,
Vou viajar para além,
Sejas de Deus protegido…
Que sempre me queiras bem.

Vou deixar-te nesta terra,
Entregue aos destinos teus;
Filho, o que este adeus encerra
Só o pode saber Deus.

Levo as crenças em pedaços,
Como pedaços de céus.
Vou ver mar, vou ver espaços
Ver temporais, escarcéus.

Filho amado, vou deixar-te
Cá na terra, pelo mar;
Porem, crê, de qualquer parte,
Crê, meu filho, hei-de voltar.

III
Adeus, noiva, vou-me embora,
Vou-me com Deus, é preciso.
Que colhas em cada aurora
Muita messe de sorriso.

Sou soldado, o meu destino
É viver bem longe, é certo,
Longe do canto divino
Da tua voz, sol aberto.

Custa bem esta partida
A mim que entanto sou forte.
Ninguém sabe o que é a vida
Para quem vive da morte.

Da morte, sim, pomba amada;
Que as minhas crenças já mortas
Tu, com essa alma estrelada
Nem tu sequer me confortas.

Perdi pai, perdi carinhos
De mãe, de irmãos e de todos.
Eu sou como a flor de espinhos
Nascida por entre lodos.

Tu vieste, ó noiva, apenas,
Como um íris de esperanças,
Dar-me alvoradas serenas,
Encher-me de confianças.

Só em ti confio, espero
Com ardor, com fé veemente,
Pomba de luz que eu venero,
Doce Vésper do Oriente.

Adeus, pois chegou a hora,
Vou-me com Deus, minha filha;
Não chores, que o mar não chora:
Olha, vê que canta e brilha.

IV
Adeus, esposa estremosa,
Vou-me, não sei para quando
Voltar minh’alma saudosa
Por meus filhos vai chorando.

Ficam-te eles no entretanto
Pra tirarem-te os pesares,
Para enxugarem-te o pranto
Que há de ser maior que os mares.

Maior que os mares, não minto,
Não exagero tão pouco,
Porque ai, só tu e só eu sinto
O nosso amor como é louco.

Vou-me às viagens, aos dias
Passados entre horizontes
E mares e ventanias
Sem arvoredos, sem montes.

Os dias de céus eternos
E de mar ilimitado,
Com tempo de atroz infernos
Com tempo de sol doirado.

Adeus! Cá dentro do peito
Há dois corações unidos;
Sobre um o mar tem direito,
Sobre outro os filhos queridos.

V
Eis as canções e adeuses de saudade
Que as desgraçadas almas palpitantes
Soluçam na sombria imensidade
Desta vida de angústias lacerantes.

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras
Afiam nas ondas maviosamente.
Que balada de plácidas venturas,
Que sinfonias, que gemer dolente!

Os céus abertos, claros, luminosos
Lembram a candidez branda das virgens.
Vítreos ares, magníficos, radiosos
Onde o sol arde em férvidas vertigens.

Lindíssimos painéis, bela paisagem
Abre na vista do viajante o ouro
Da luz que salta como uma homenagem
De oriental, esplêndido tesouro.

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.
As vagas desenrolam-se de leve.
Parece um berço por de sobre um rio
Manso, prateado, espúmeo, cor de neve.

Vive-se a bordo como em terra. As vagas
Nunca foram tão doces e tão meigas,
Como em desertas, viridentes plagas
É doce e meigo o mole chão das veigas.

Viver assim, na realidade, é gozo
Que até parece não haver na terra!
Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso,
Tal confiança nos semblantes erra!

Vogando assim a embarcação, quem pensa
Ir acordado afora pela Vida?!
Tudo é um sonho de esperança imensa
Um bom sonho de aurora indefinida.

VI
Súbito os ares enchem se de noite
E grita e zune, zargunchando o vento
Que esbraveja, morde com rijo acoite
O mar que espuma e empola num momento.

Não estrugem os raios pela treva
Não há trovões bravios rebentando
Como canhões que estouram, mas se eleva
Do oceano um vendaval que vai urrando

Com fúrias e com cóleras enormes
Como potros sanhudos relinchando
Em pinotes e berros desconformes.

Caiu talvez no mar o etéreo espaço,
Toda a cúpula azul tombou, quem sabe?
Céus! há lutas ali, de braço a braço.
Horror! Crível será que o mundo acabe?

Ninguém calcula o que será tudo isso…
Mas os ventos eléctricos, largados
Nas amplidões do mar antes submisso,
Rugindo vão como desesperados.

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,
E se afervora mais e mais a crença.
Mas, onde os astros muita vez palpitam
No céu, há noite cada vez mais densa.

Ah! que mudez de túmulo nos ares.
Nada responde, oh! nada então responde;
Mas onde está o grande Deus dos mares
E da terra, onde está, aonde, aonde?

Tudo está mudo a natureza inteira,
Tudo emudece e não responde nada;
E só os vendavais têm a maneira
De responder dando uma gargalhada.

Gargalhada de lágrimas atrozes,
De lágrimas de morte e de agonia
Que abafa e extingue na garganta as vozes,
Gera a coragem que é a luz do dia.

Ó valentes e rudes marinheiros
Vindos da pátria para pátria nova,
Que sepultais amores verdadeiros
Do tão profundo coração na cova;

Ó viajantes de longe, de países
Onde a vida cintila e canta alerta
Como um turbilhão de aves felizes
Numa campina de rosais, deserta;

Ó vós todos que vindes lá do oceano,
Entre as mais bruscas e hórridas tormentas.
Lá do mar, alto, a vela, a todo o pano,
Com as almas ansiosas e sedentas,

De chegar cedo ao porto desejado,
Calculai, calculai o quanto é triste
Ver dar à praia um pobre desgraçado
Em cuja carne a podridão existe!

À praia! À praia! Dai à praia, morto,
Rejeitado por ondas convulsivas,
Indo encontrar na sepultura o porto,
Deixando ao mundo as ilusões mais vivas.

O eterno amor de mãe, de filho, esposa,
Tanta fé, tanto riso de alegria,
Tanta coisa dourada, ai tanta coisa
Que ao recordar toda a nossa alma esfria.

Morrer no mar, os nervos contraídos,
Numa asfixia atroz, cerrando os dentes,
Num abismo de cores e gemidos,
De maldições e de uivos de descrentes;

Morrer no mar, sem o farol amigo,
Esse farol que os náufragos anima,
Fora de protecção, fora de abrigo,
Sem sequer uma luz no espaço, em cima;

Morrer no mar, sem astros no infinito,
Na solidão das águas, fria, imensa,
Enquanto a treva aura de granito,
Ri se de tudo, com indiferença;

Morrer no mar, só e desamparado
E num terror que não acaba nunca,
Vendo rasgar o corpo enregelado
O desespero como garra adunca.

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles
Que morrem mesmo assim lá no mar fundo
Sem ter alguém que ao menos neste mundo
Derrame uma só lágrima por eles!

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