Nota biográfica

António Pereira Nobre (Porto, 16 de Agosto de 1867 — Foz do Douro, 18 de Março de 1900), mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português.

“O teu retrato”, poema de António Nobre.

25.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

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António Nobre – “Quando Chegar a Hora”

22.07.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

aguia

Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abade,
Oiça isto que lhe peço:
Mande-me abrir, ali, uma cova á vontade,


Olhe: eu mesmo lh’a meço…
O coveiro é podão, fa-las sempre tão baixas…
O cão pode lá ir:
Diga ao moço, que tem a prática das sachas,
Que m’a venha ele abrir.
E o sineiro que, em vez de dobrar a finados,
Que toque a Aleluia!
Não me diga orações, que eu não tenho pecados:
A minha alma é dia!
Será meu confessor o vento, e a luz do raio
A minha Extrema-Unção!
E as carvalhas (chorai o poeta, encomendai-o!)
De padres farão.
Mas as águias, um dia, em bando como astros,
Virão devagarinho,
E hão-de exumar-me o corpo e levá-lo-ão de rastros,
Em tiras, para o ninho!
E ha-de ser um deboche, um pagode, o demónio,
N’aquele dia, ai!
Águias! sugai o sangue a vosso filho Antonio,
Sugai! sugai! sugai!
Raro têm de comer. A pobreza consome
As águias, coitadinhas!
Ao menos, n’esse dia, eu matarei a fome
A essas desgraçadinhas…
De que serve, Sr. Abade! o nosso pacto:
Não me lembrei, não vi
Que tinha feito com as águias um contrato,
No dia em que nasci.

(Da obra “Só”)

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António Nobre – “Viagens na minha terra”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ás vezes, passo horas inteiras
Olhos fitos n’estas brazeiras,
Sonhando o tempo que lá vae;
E jornadeio em phantazia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pae.

Que pittoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Promptos os dois para partir:
-Adeus! adeus! é curta a auzencia,
Adeus – rodava a diligencia.
Com campainhas a tinir!

E, dia e noute, aurora a aurora,
Por essa doida terra fóra,
Cheia de Côr, de Luz, de Som,
Habituado á minha alcova
Em tudo eu via coiza nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!
Moinhos ao vento! Eiras! Solares!
Antepassados! Rios! Luares!
Tudo isso eu guardo, aqui ficou:
Ó payzagem etherea e doce,
Depois do Ventre que me trouxe,
A ti devo eu tudo que sou!

No arame oscilante do Fio,
Amavam (era o mez do cio)
Lavandiscas e tentilhões …
Agoas do rio vão passando
Muito mansinhas, mas, chegando
Ao Mar, transformam-se em leões!

Ao Sol, fulgura o Oiro dos milhos!
Os lavradores mail-os filhos
A terra estrumam, e depois
Os bois atrelam ao arado
E ouve-se além no descampado
N’um impeto, aos berros: – Eh! bois!

E, em quanto a velha mala-posta,
A custo vae subindo a encosta
Em mira ao lar dos meus Avós,
Os aldeãos, de longe, álerta,
Olham pasmados, bocca aberta …
A gente segue e deixa-os sós.

Que pena faz ver os que ficam!
Pobres, humildes, não implicam,
Tiram com respeito o chapéu:
Outros, passando a nosso lado,
DIziam: «Deus seja louvado!,.
«Louvado seja!» dizia eu.

E, meiga, tombava a tardinha …
No chão, jogando a vermelhinha,
Outros vejo a discutir.
Carpiam, mysticas, as fontes …
Agoa fria de Traz-os-Montes
Que faz sede só de se ouvir!

E, na subida de Novellas,
O rubro e gordo Cabanellas
Dava-me as guias para a mão:
Isso … queriam os cavallos!
Que eu não podia chicoteal-osx
Era uma dôr de coração.

Depois, cançados da viagem,
Repoizavamos na estalagem
(Que era em Casaes, mesmo ao dobrar … )
Vinha a Sra. Anna das Dores
“ Que hão-de querer os meus Senhores?
Há pão e carne para assar x”

Oh! ingenuas mezas, honradas!
Toalhas brancas, marmeladas,
Vinho virgem no copo a rir …
O cuco da sala, cantando …
(Mas o Cabanellas, entrando,
Vendo a hora: «É preciso partir».)

Caia a noite. Eu ia fóra,
Vendo uma estrella que lá mora,
No Firmamento portuguez:
E ella traçava-me o meu fado
“Serás Poeta e desgraçado!»
Assim se disse, assim se fez.

Meu pobre Infante, em que scismavas,
Porque é que os olhos profundavas
No Céu sem par do teu Paiz?
Ias, talvez, moço troveiro,
A scismar n’um amor primeiro:
Por primeiro, logo infeliz …

E o carro ia aos solavancos.
Os passageiros, todos brancos,
Resonavam nos seus gabões:
E eu ia álerta, olhando a estrada,
Que em certo sitio, na Trovoada,
Costumavam sair ladrões.

Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!
Fazer parte d’uma quadrilha,
Rondar, á Lua, entre pinhaes!
Ser Capitão! trazer pistolas,
Mas não roubando, – dando esmolas
Dependuradas dos punhaes …

E a mala-posta ia indo, ia indo,
O luar, cada vez mais lindo,
Caia em lagrymas, – e, emfim,
Tão pontual, ás onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Caza
Toda de lume, côr de braza,
Altiva, entre arvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem, sorrindo, a minha Avó.

E então, Jezus! quantos abraços!
Qu’é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como elle vem!
Toda admirada, de mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Bethlem !

-E os teus estudos, tens-me andado?
Tomára eu ver-te formado!
Livre de Coimbra, minha flôr!
Mas vens tão magro, tão sumido …
Trazes tu no peito escondido,
E que eu não saiba, algum amor?

No entanto entrava no meu quarto:
Tudo tão bom, tudo tão farto!
Que leito aquelle! e a agoa, Jezus !
E os lençoes! rico cheiro a linho!
-Vá, dorme que vens cançadinho.
Não adormeças com a luz!

E eu deitava-me, mudo e triste.
(- Reza tambem o Terço, ouviste?)
Versos, bailando dentro em mim …
Não tinha tempo de ir na sala,
De novo: – Apaga a luz! – Que rala!
Descança, minha Avó, que sim!
Ora, ás occultas, eu trazia
No seio, um livro e lia, lia,
Garrett da minha paixão …
D’ahi a pouco a mesma reza:
– Não vás dormir de luz acceza,
Apaga a luz! (E eu ainda…não!)

E continuava, lendo, lendo …
O dia vinha já rompendo,
De novo: – Já dormes, diz?
– Bff! … e dormia com a ideia
N’aquella tia Dorotheia,
De que falla Julio Diniz.

Ó Portugal da minha infancia,
Não sei que é, amo-te a distancia,
Amo-te mais, quando estou só …
Qual de vós não teve na Vida
Uma jornada parecida,
Ou assim, como eu, uma Avó?

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António Nobre – “Purinha”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

o Espírito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera,
Que (aonde ainda não sei) neste Mundo me espera;
Aquela que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Senhor Padre me dará pra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Há-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabelo em cachos, cachos de uvas,
E negro como a capa das viúvas …
(À maneira o trará das virgens de Belém
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhais,
Fusos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua boca uma romã,

Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la,
Cabrinhas-montesas da Serra da Estrela …
E há-de ser natural como as ervas dos montes
E as rolas das serras e as águas das fontes,
E há-de ser boa, excepcional, quase divina,
Mais pura, mais simples, que moça e menina.
Deus, pela voz dos rouxinóis há-de gabá-la

E os rios ao passar hão-de cantá-la.
Seu virgem coração há-de ser tão branquinho,
Que não há neste Mundo a que igualá-lo: o linho
Que, em roca de cristal, fiava a minha Avó
Parecerá de crepe, e a neve … far-me-á dó,
Mais a farinha do moleiro e a violeta,
E a Lua para mim será como uma Preta!

Mas em que Pátria, em que Nação é que me espera
Esta Torre, esta Lua, esta Quimera?
Fui ter com minha Fada e disse-lhe: “Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?”
E a minha Fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá em baixo, ao pé do Mar …

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!

E no dia do meu recebimento!
Manhã cedo, com luar ainda no Firmamento,
Quando ainda no Céu não bole uma Asa,
A minha Noiva sairá de casa
Maila sua Mãe, mailos seus Irmãos.
E há-de sorrir, e hão-de tremer-lhe as mãos …
E a sua Ama há-de segui-la até à porta,
E ficará, coitada! como morta!
E há-de ser triste vê-la, ao longe, ainda … olhando,
Com o avental seus olhos enxugando …
E hão-de cercá-la sete Madrinhas;
Que hão-de ser sete virgens pobrezinhas,
Todas contentes por estrear vestido novo!
E, ao vê-las, suas mães sorrirão dentre o Povo …
E o povo da freguesia
Esperará mais eu, no adro de Santa Iria.
E hão-de mirar-me com seu ar curioso,
E hão-de cercar-me, num silêncio respeitoso.
E eu hei-de-Ihes falar das colheitas, da chuva,
E dir-me-ão “que já vai pintando a uva … ”

E animados então (o Povo é uma criança!)
Porque o Sr. Doutor lhes deu confiança,
“Que Deus o ajude” dirá um, e o Regedor:
“Vá coa Graça de Nosso Senhor!”
E eu hei-de agradecer, sorrir, gostar.
Mas o Anjo, no entanto, não deve tardar …
E d’entre o grupo exclamará um Velho, então:
“Já nasce o dia!” eu olharei … mas não:
É a minha Noiva que parece dia,
Luzente como a cal de Santa Iria!
E ao vê-la tão branca, de branco vestida,
Ao longe, ao longe, hei-de cuidar ver uma Ermida!
E dirá o Pastor, com espanto tamanho,
Que é uma Ovelha que fugiu do seu rebanho!
E o João Maluco dirá que é o Luar de Janeiro!
E o Pescador explicará ao bom Moleiro
Que é tal-qualzinha a sua Lancha pelo Mar!
E o Moleiro dirá que é o seu Moinho a andar!
Que assim já foram as velhinhas cismarão,
E as netas, coitadas! que, um dia, o serão …
Mas o Anjo assomará, à porta da capela,
E eu branco e trémulo hei-de ir ter com ela.
E a estrela deitar-me-á a bênção dos seus olhos
E uma aldeã deitar-lhe-á violetas, aos molhos!
E a Bem-Amada entrar na igreja há-de …
E há-de casar-nos o Senhor Abade.
E, em seguida, será a nossa boda,
E festas haverá, na aldeia toda.
E as mais raparigas do sítio, solteiras,
Hão-de bailar bailados sobre as eiras,
Com trinta moedas de oiro sobre o peito!
E cantigas dirão a seu respeito
E a Noiva em glória, perpassando nas janelas,
Sorrirá com simplicidade para elas.
E a noite, pouco e pouco, descerá …
E tudo acabará.
E depois e depois, o Anjo há-de se ir deitar,
E a sua Mãe há-de a abraçar … E hão-de chorar!
E a sua alcova deitará sobre o jardim,
Onde uma fonte correrá, entre alecrim:
E, ao ouvi-la cantar, deitadinha na cama,
O Anjo adormecerá, cuidando que é a sua Ama …
Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra
Que este Palácio de Ventura encerra?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: “Madrinha!
Acaso nunca te mentiu tua varinha?”
E a minha fada com sua vara de condão
Nos ares escreveu com três estrelas: “Não!”

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas! lindas meninas
Do Reino de Portugal!

O nosso Lar!
Minha Madrinha!, ajuda-me a sonhar!
Que a nossa casa se erga d’ entre uma eminência,
Que seja tal qual uma residência,
Alegre, branca, rústica, por fora.
Que digam: “É o Senhor Abade que ali mora … ”
Mas no interior ela há-de ser sombria,
Como eu com esta melancolia:
E salas escuras, chorando saudades …
E velhos os móveis, de antigas idades …
(E, assim, me iluda e, assim, cuide viver
Noutro século em que eu deveria nascer.)
E nas paredes telas de Parentes …
E janelas abertas sobre os poentes …
(E a Quimera lerá o seu livro de rezas … )
E cravos vermelhos por cima das mesas …
E o relógio dará as horas devagar,
Como as palpitações de quem se vai finar …

E, o dia todo, neste claustro e solidão,
Passarei a esquecer, ao canto do fogão;
E a cismar e a cismar sem que me veja alguém
Na Dor, na Vida, em Deus, nos mistérios do Além?
E eu o Astrólogo, o Bruxo, o Aflito, o Médio,
Rogarei aos Espíritos remédio
E um bom Espírito virá tratar do Doente
E há-de fugir com susto a outra gente.
E a Noite descerá, pouco e pouco, no entanto,
E a Noite embrulhará o Aflito no seu manto!
Mas a Purinha, então, vindo da rua,
Toda de branco surgirá, como uma Lua!
E, ao vê-la, acordarei, meu Deus de França!
E pela mão me levará, como uma criança.
E eu pálido! e eu tremendo! e o Anjo pelo caminho,
“Não te aflijas … ” dirá, baixinho …

E, assim, será piedosa para os mais:
E há-de entrar na miséria dos casais,
Nos montes mais altos, nos sítios mais ermos,
E será a Saúde dos Enfermos!
E quando pela estrada encontrar um velhinho
Todo suado, carregadinho,
(Louvado seja Nosso Senhor!)
Há-de tirar seu lenço e ir enxugar-lhe o suor!
E às aves, em prisão, abrirá as gaiolas.
E aos sábados, o dia das esmolas,
A Santa descerá ao patamar da escada,
(Envolta, sem saber, numa capa estrelada)
Esmolas, distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos
E mais aos aleijadinhos,
Mais aos que deitam sangue pela boca,
Mais aos que vêm cantar, numa rabeca rouca,
Amores, naufrágios e A Nau Catrineta,
Mais aos Aflitos que andam no Planeta,
Mais às viúvas dos Degredados …
E tudo seja pelos meus pecados!
E há-de coser (serão os remendos de flores)
As velas rotas dos pescadores
E a luz do seu olhar benzerá essas velas
E nunca mais hão-de rasgar-lhas as procelas!
E acenderá os círios ao Senhor,
(Que sejam como ela no talhe e na cor)
Quando houver temporal… e eu vier prà sacada
Ver os relâmpagos, ouvir a trovoada!
E nisto só resumir-se-á a sua vida:
Vestir os Nus, aos Pobres dar guarida,
Falar à alma que na angústia se consome,
Dar de comer a quem tem fome,
Dar de beber a quem tem sede …

E, lá, do Alto, Jesus dirá aos Homens: “Vêde … ”
E eu hei-de em minhas obras imitá-la.
E amá-la como à Virgem e adorá-la.
E a Virgem há-de encher com a mesma paixão
As marés-vazas deste pobre coração
Que tanto teve e hoje nada tem,
Nem mesmo aquilo que vós tendes, Mãe.
E será a Mamã que me há-de vir criar,
Admirável Joaninha d’Arc,
Meu novo berço duma Vida nova!
E há-de ir comigo para a mesma cova,
Pois que no dia em que eu morrer
Veneno tomará, numa colher …
Mas em que sítio, aonde? aonde? é que se esconde
Esta Bandeira, esta Índia, este Castelo, aonde? aonde?
Fui ter com minha Fada, e disse-lhe: “Madrinha!
Mas pode haver, assim, na Terra uma Purinha?”
E a minha Fada com sua vara de marfim
Nos ares escreveu com três estrelas: “Sim!”

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!

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António Nobre – “Para as raparigas de Coimbra”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tristezas têm-nas os montes,
Tristezas têm-nas o Céu,
Tristezas têm-nas as fontes,
Tristezas tenho-as eu!

O choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós,
És tal qual meu Avôzinho:
Falta-te apenas a voz.

Minha capa vos acoite
Que é para vos agazalhar:
Se por fora é côr da noite,
Por dentro é côr do luar …

Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do Céu!

A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao Sol:
Não cae, tolinho, a essa isca …
Só pondo uma flor no anzol!

A Lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É duma certa farinha
Que não apanha bolor.

Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, q’ué da tua agoa,
Q’ué dos prantos que eu chorei?

No inverno não tens fadigas,
E tens agoa, para leões!
Mondego das raparjgas,
Estudantes e violões I

– É só porque o mundo zomba
Que pões luto? Importa lá!
Antes te vistas de pomba …
-Pombas pretas tambem ha!

Therezinhas I Ursulinas!
Tardes de novena, adeus!
Os corações ás batinas
Que diriam? sabe-o Deus.

Ó bôca dos meus dezejos”
Onde o padre não poz sal,
São morangos os teus beijos,
Melhores que os do Choupall

Manoel do Pio repoiza.
Todas as tardes, lá vou
Ver se quer alguma coiza,
Perguntar como passou.

Agora, são tudo amores
Á roda de mim, no Caes,
E, mal se apanham douctores,
Partem e não voltam mais ….

Aos olhos da minha fronte
Vinde os cantarao encher:
Não ha, assim, segunda fonte
Com duas bicas a correr.

Os teus peitos são dois ninhos
Muito brancos, muito novos,
Meus beijos os passarinhos
Mortinhos por pôrem ovos.

Nossa Senhora faz meia
Com linha branca de luz:
O novelho é a Lua-Cheia,
As meias são pr’a Jezus.

Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons,
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons.

Ó Fogueiras, ó cantigas,
Saudades! recordações!
Bailae, bailae, raparigas!
Batei, batei, corações!

Coimbra, 1890.

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António Nobre – “Canção da felicidade”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

felicidade

Felicidade! Felicidade!
Ai quem me dera na minha mão!
Não passar nunca da mesma idade,
Dos 25, do quarteirão.

Morar, mui simples, n’alguma caza
Toda caiada, defronte o Mar;
No lume, ao menos, ter uma braza
E uma sardinha p’ra n’ella assar ….

Não ter fortuna, não ter dinheiro,
Papeis no Banco, nada a render:
Guardar, podendo, n’um mialheiro
Economias p’r’o que vier.

Ir, pelas tardes, até á fonte
Ver as pequenas a encher e a rir,
E ver entre ellas o Zé da Ponte
Um pouco torto, quazi a cair.

Não ter chymeras, não ter cuidados
E contentar-se com o que é seu,
Não ter torturas, não ter peccados,
Que, em se morrendo, vai-se p’r’o Céu!

Não ter talento; suficiente
Para na Vida saber andar,
E quanto a estudos saber sómente
(Mas ai sómente!) ler e contar.

Mulher e filhos! A Mulherzinha
Tão loira e alegre, ]ezus! ]ezus!
E, em nove mezes, ve-la choquinha
Como uma pomba, dar outra á luz

Oh! grande vida, valha a verdade!
Oh! grande vida, mas que illuzão!
Felicidade! Felicidade!
Ai quem ma dera na minha mão!

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António Nobre – “O sono do João”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

joao13

O João dorme … (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar … )
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria … um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores …
Mas os outros são menores!

O João dorme … Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho …
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar …

O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é …

Ó Mãe, canta-lhe a canção,
Os versos do teu Irmão:
«Na vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir …
Tudo vai sem se sentir».

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho … até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo …

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João … ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar…
E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio …
Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar …

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