Nota biográfica

Poeta e médico português, Jorge de Sousa Braga nasceu a 23 de dezembro de 1957, em Cervães, no concelho de VilaVerde. Jorge de Sousa Braga pertence à geração dos poetas da pós-revolução, revelando uma habilidade inata na construção poética.

Jorge de Sousa Braga – “Mãe”

05.01.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

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Mãe
Não consigo adormecer
Já experimentei tudo. Até contar carneirinhos
Não consigo adormecer
Nem chorar
(Que maior tragédia poderá acontecer a um homem do
que a de já não ser
capaz de chorar?)


Mãe
Sabias que o cordão umbilical pode funcionar
como uma corda num enforcamento?
— tenho aprendido coisas bem singulares neste
convívio com os deuses —

Um dia destes regressarei a Tebas para ser coroado 

Reservei hoje mesmo um lugar num avião das Linhas 
Aéreas Gregas

Gostaria de brindar contigo com uma taça de orvalho 
antes de partir

Mãe
Detesto coberturas de açúcar mesmo que levem limão 

Isto é tão certo como o é tu não me compreenderes 

Estava a sonhar que estava a sonhar e assim por aí adiante até ao infinito.
Depois
 acordei. E fui descendo vertiginosamente de sonho 
para sonho 

Ainda não parei de acordar. E de sonhar

Mãe
Tenho uma surpresa para ti

um caramanchão para que te possas sentar todas as 

tardes a catar estrelas 
na minha cabeça

Mãe
Abriu um concurso para preencher uma vaga de

ascensorista no Paraíso e eu concorri

Achas que tenho alguma hipótese de ser admitido?

— tenho a boca cheia de formigas —

Mãe
um dia hei-de subir contigo
degrau
a degrau
o arco-íris

(in “Antologia Poétca”)

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Jorge Sousa Braga – “As árvores e os livros”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

As árvores como os livros têm folhas
     e margens lisas ou recortadas,
     e capas (isto é copas) e capítulos
     de flores e letras de oiro nas lombadas. 
E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras. 
As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas». 
É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.

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Jorge Sousa Braga – “Portugal”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Captura de ecrã 2016-07-19, às 18.20.50

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de África
só porque não podia combatera doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira, que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente.
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo Anda na consulta externa do Júlio de Matos Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um Império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentugal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete, Salazar estava no poder, nada de ressentimentos
o meu irmão esteve na guerra, tenho amigos que emigraram, nada de ressentimentos
um dia bebi vinagre, nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fossemos todos a Ceuta à procura do olho que Camões lá deixou Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos? São castanhos como os da minha mãe Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente na boca

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