“As putas da Avenida”, poema de Fernando Assis Pacheco.
16.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Fernando Santiago Mendes de Assis Pacheco (Coimbra, 1 de Fevereiro de 1937 — Lisboa, 30 de Novembro de 1995) foi um jornalista, crítico , tradutor e escritor português.
16.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena
vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena
essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena
mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho vinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena
(in ‘Variações em Sousa”)
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11.09.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.
A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.
Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.
Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.
(in “A Musa Irregular”)
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23.07.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque
ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor
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22.07.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
A tua nudez inquieta-me.
Há dias em que a tua nudez
é como um barco subitamente entrado pela barra.
Como um temporal. Ou como
certas palavras ainda não inventadas,
certas posições na guitarra
que o tocador não conhecia.
A tua nudez inquieta-me. Abre o meu corpo
para um lado misterioso e frágil.
Distende o meu corpo. Depois encurta-o e tira-lhe
contorno, peso. Destrói o meu corpo.
A tua nudez é uma violência
suave, um campo batido pela brisa
no mês de Janeiro quando sobem as flores
pelo ventre da terra fecundada.
Eu desgraço-me, escrevo, faço coisas
com o vocabulário da tua nudez.
Tenho «um pensamento despido»;
maturação; altas combustões.
De mão dada contigo entro por mim dentro
como em outros tempos na piscina
os leprosos cheios de esperança.
E às vezes sucede que a tua nudez é um foguete
que lanço com mão tremente desastrada
para rebentar e encher a minha carne
de transparência.
Sete dias ao longo da semana,
trinta dias enquanto dura um mês
eu ando corajoso e sem disfarce,
ilumindo, certo, harmonioso.
E outras vezes sucede que estou: inquieto.
Frágil.
Violentado.
Para que eu me construa de novo
a tua nudez bascula-me os alicerces.
Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”
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07.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come
quantos anos passados deste dia
ainda estaremos como agora juntos
na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver no fogo esperto
minha mãe diz um dito qualquer
seca a vista embaciada eu venho
do pátio certamente cantando
o tio – as urinas presas
no laço da bexiga –
conta uma história
da guerra de 14
do vizinho morto jovem
como ele Manuel sorte infeliz
ao tempo que isto foi
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Variações sobre um fado
Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
figas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar jornais,
ou cartas, de amizade um pouco
– tanto pó sobre os móveis tua ausência.
Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.
Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta … »
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.
Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.
Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?
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