Nota biográfica

Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage (Setúbal, 15 de Setembro de 1765 – Lisboa, 21 de Dezembro de 1805) foi um poeta português e, possivelmente, o maior representante do arcadismo lusitano. Embora ícone deste movimento literário, é uma figura inserida num período de transição do estilo clássico para o estilo romântico que terá forte presença na literatura portuguesa do século XIX.

“Nascemos para amar” de Bocage.

08.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nascemos para amar; a humanidade
Vai tarde ou cedo aos laços de ternura:
Tu és doce atractivo, ó formosura,
Que encanta, que seduz, que persuade.

Enleia-se por gosto a liberdade;
E depois que a paixão n’alma se apura
Alguns então lhe chamam desventura,
Chamam-lhe alguns então felicidade.

Qual se abismou nas lôbregas tristezas,
Qual em suaves júbilos discorre,
Com esperanças mil na ideia acesas.

Amor ou desfalece, ou pára, ou corre;
E, segundo as diversas naturezas,
Um porfia, este esquece, aquele morre.

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“Ah, um soneto…”, poema de Álvaro de Campos.

07.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco em
casa a passear, a passear…

No movimento (eu mesmo me desloco nesta
cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços. Há
saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.

Mas — esta é boa! — era do coração
que eu falava… e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação? …

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Poema (sem título), de Egito Gonçalves.

06.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sinto sob a nuca o pulsar

das tuas ancas. Escrevo

no puro azul do ar

a fórmula do teu nome,

o destino, este fogo. A calma 

da manhã dá-me

o silêncio suave de te ter,

de esquecer a fronteira…

Estás, longe do luto, da cidra

solitária. Uma ave

— cegonha ou garça? — agita

o céu da gândara, as linhas

da ternura. Um outono

de orvalho, comovido, 

veste-me — ou é

a água dos teus lábios?

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“Já?” de Alberto Pimenta.

04.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

já tentaste praticar o bem
fazendo mal?
já tentaste praticar o mal
fazendo bem?
já tentaste praticar o bem
fazendo bem?
já tentaste praticar o mal
fazendo mal?
já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?
já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?
já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?
e o contrário, já tentaste?
já?
seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga.

Alberto Pimenta, in ‘Prodigioso Acanto’

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“Chega Através” de Álvaro de Campos.

02.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Chega através do dia de névoa alguma coisa
do esquecimento, 

Vem brandamente com a tarde a oportunidade
da perda.

Adormeço sem dormir, ao relento da vida.


É inútil dizer-me que as ações têm
consequências. 

É inútil eu saber que as ações usam
consequências.

É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.


Através do dia de névoa não chega
coisa nenhuma.


Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante
anunciado, 

De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.

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“Queria falar contigo” de Eugénio de Andrade.

01.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

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“Morangos” de Rui Pires Cabral.

31.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

No começo do amor, quando as cidades
nos eram desconhecidas, de que nos serviria
a certeza da morte se podíamos correr
de ponta a ponta a veia eléctrica da noite
e acabar na praia a comer morangos
ao amanhecer? Diziam-nos que tínhamos

a vida inteira pela frente. Mas, amigos,
como pudemos pensar que seria assim
para sempre? Ou que a música e o desejo
nos conduziriam de estação em estação
até ao pleno futuro que julgávamos

merecer? Afinal, o futuro era isto.
Não estamos mais sábios, não temos
melhores razões. Na viagem necessária
para o escuro, o amor é um passageiro
ocasional e difícil. E a partir de certa altura
todas as cidades se parecem.

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“Heroísmos” de Cesario Verde.

30.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento;
O mar sublime, o mar que nunca dorme.

Eu temo o largo mar rebelde, informe,
De vítimas famélico, sedento,
E creio ouvir em cada seu lamento
Os ruídos dum túmulo disforme.

Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n’água quase assente

E ouvindo muito ao perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

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“Vaidade” de Florbela Espanca.

27.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sonho que sou a Poetisa eleita, 

Aquela que diz tudo e tudo sabe, 

Que tem a inspiração pura e perfeita, 

Que reúne num verso a imensidade!

Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!

Sonho que sou Alguém cá neste mundo… 

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a terra anda curvada!

E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando.

Acordo do meu sonho… E não sou nada!.

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Poema de Daniel Faria – (sem nome)

26.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Homens que são como lugares mal situados

Homens que são como casas saqueadas

Que são como sítios fora dos mapas

Como pedras fora do chão

Como crianças órfãs

Homens sem fuso horário

Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas

Que são como caminhos barricados

Homens que querem passar pelos atalhos sufocados

Homens sulfatados por todos os destinos

Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias

Que são como os esconderijos dos contrabandistas

Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis

Homens que são sobreviventes vivos

Homens que são como sítios desviados

Do lugar

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“As Pedras” de Maria Alberta Menéres.

25.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

As pedras falam? pois falam
mas não à nossa maneira,
que todas as coisas sabem
uma história que não calam.

Debaixo dos nossos pés
ou dentro da nossa mão
o que pensarão de nós?
O que de nós pensarão?

As pedras cantam nos lagos
choram no meio da rua
tremem de frio e de medo
quando a noite é fria e escura.

Riem nos muros ao sol,
no fundo do mar se esquecem.
Umas partem como aves
e nem mais tarde regressam.

Brilham quando a chuva cai.
Vestem-se de musgo verde
em casa velha ou em fonte
que saiba matar a sede.

Foi de duas pedras duras
que a faísca rebentou:
uma germinou em flor
e a outra nos céus voou.

As pedras falam? pois falam.
Só as entende quem quer,
que todas as coisas têm
um coisa para dizer.

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“Não estou pensando em nada” de Álvaro de Campos.

24.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida…
Não estou pensando em nada.
É como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada…

Álvaro de Campos, in “Poemas”
Heterónimo de Fernando Pessoa

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“Quando o Homem Atinge” de Cruzeiro Seixas

23.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar


Quando o homem atinge
aproximadamente a sua medida
rebentam as lágrimas nas mais altas serranias
e assim nasce
algures um povo
um espelho de prata
na vastidão de um leito.
Uma espécie de descoberta
inútil
mas que sempre será celebrada
como uma imensa revoada de pombos.
Nada a fazer
o palhaço
está caído entre os seus símbolos
a gritar para além do vidro
à chuva
sobre a evidência da terra empapada.
Um homem
um fruto
ou melhor
um minúsculo som
engaiolado na janela
aberta
na tua carne fremente.

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“Anjo de Deus, Anjo do Inferno” de António Pedro

21.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quem és?
Para que vieste?
Porque não és como eles?
Porque não falas a linguagem deles?
Até parece que já estiveste
aqui antes
não há psiquiatras
nem psicólogos
que expliquem
os teus delírios
a tua loucura
a tua louca sabedoria
o dinheiro nada te diz
nem o ganhar a vida
amas as mulheres belas
canta-las
queres derrubar o Império
para chegar ao Paraíso
já em menino eras assim
puro
justo
bondoso
mas se te fazem mal
vingas-te
estátuas, castelos caem
à tua passagem
provocas
anjo de Deus
anjo do inferno.

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“A nossa vez” de Rui Pires Cabral

19.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar

e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera

e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer

a nossa vez.

Rui Pires Cabral, in ‘Longe da Aldeia’

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“Primavera” de Urbano Tavares Rodrigues

18.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

A Primavera vem dançando
com os seus dedos de mistério e turquesa

Vem vestida de meio dia e vem valsando
entre os braços de um vento sem firmeza

Nu como a água o teu corpo quieto e ausente

Só este inquieto esvoaçar do teu sorriso
Loiro o rosto o olhar não sei se mente
se de tão negro e parado é um aviso
do destino que me fixa finalmente

Ai, a Primavera vai passando
com os seus dedos de mistério e de turquesa
Segue Primavera vai cantando
Que será do nosso amor nesta praia de incerteza.

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“Meditação” de Natália Correia

18.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

A carne é flor ou consequência do seu perfume?
Seja o que for
é intensidade que a flor resume.
A mão é gesto que a ultrapassa. O gesto é além.
Porque a mão toca o horizonte
que o gesto da mão contém.
O homem canta.
E enquanto canta o homem dura.
Porque o seu canto é perceber
que a voz prevalece à criatura.

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“Como te amo” de Fernando Pessoa

16.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Como te amo? Não sei de quantos modos vários
Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te com o fervor dos meus sentidos gastos;
Amo-te com o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mares altisonos e vastos;
É suave como o odor de lírios solitários.

Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,
Muito maior será na paz da sepultura!

Fernando Pessoa, “Inéditos – Poemas de Lança-Pessoa – Manuscrito (Junho/1902)

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“Mãe” de Miguel Torga

13.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Mãe:

Que desgraça na vida aconteceu,

Que ficaste insensível e gelada? 

Que todo o teu perfil se endureceu 

Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa

Cansada de palavras e ternura.

Assim tu me pareces no teu leito, 

Presença cinzelada em pedra dura,

Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti – não me respondes.

Beijo-te as mãos e o rosto – sinto frio.

Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes

Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:

Abre os olhos ao menos, diz que sim!

Diz que me vês ainda, que me queres. 

Que és a eterna mulher entre as mulheres.

Que nem a morte te afastou de mim!

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“Cruz na porta da tabacaria” de Álvaro de Campos

12.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.


Quem era? Ora, era quem eu via. 

Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.


Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.


Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.


Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria.

Desde ontem a cidade mudou.

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“Ao Manuel Torre do Valle” de Rui Cinatti.

12.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando o amor morrer dentro de ti,
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma o inventário
Do templo onde a vida ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram.

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“Dois poemas de amor” de Urbano Tavares Rodrigues

10.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

I
Rosa vibrante dos subterrâneos
de uma nova resistência
desabrochas
com a luz do dia
sempre ao meu lado
o rosto e o seio
irradiando
o fogo jovem da paixão
dá-me essa água
da felicidade
que nos teus olhos brilha
Quero o sumo dos teus lábios
Entrar no jardim do teu corpo
é o esplendor da vida.
II
Nas folhagens do azul
mais luminoso
encontro a música silenciosa
do teu primeiro sorriso
e lembro
depois
o automóvel cortando a noite
a tua boca fremente
a tua mão na minha
Lisboa a madrugar
no renascer do mundo

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“Plano” de Nuno Júdice

10.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor que se despeja no copo da vida, até meio, como se o pudéssemos beber de um trago. No fundo, como o vinho turvo, deixa um gosto amargo na boca. Pergunto onde está a transparência do vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez. esperando que o tempo encha o copo até cima, para que o possa erguer à luz do leu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

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“Soneto do amigo” de Vinícius de Moraes

08.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Enfim, depois de tanto erro passado
Tantas retaliações, tanto perigo
Eis que ressurge noutro o velho amigo
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado
Com olhos que contêm o olhar antigo
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, simples e humano
Sabendo se mover e comover
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica
Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minha alma multiplica…

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“As lições” de Ana Hatherly

07.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ensinaram-me a falar


aprendi a escrever.
Ensinaram-me a escrever

aprendi a falar.

Ensinaram-me a ler

aprendi a ver.

Ensinaram-me a ouvir

aprendi a calar.

Ensinaram-me a pedir

aprendi a dar.

Ensinaram-me a comprar

aprendi a ter.

Ensinaram-me a beber

aprendi a rir.

Ensinaram-me a fugir

aprendi a ficar.

Ensinaram-me a aprender
Aprendi a ignorar.

Ensinaram-me a amar

aprendi a criar.

Ensinaram-me a viver

aprendi a morrer.

Ensinaram-me a estar só

aprendi a estar.

Ensinaram-me a ser livre

aprendi a ser.


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“Amor” de Irene Lisboa

04.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Aqueles olhos aproximam-se e passam.

Perplexos, cheios de funda luz,

doces e acerados, dominam-me.

Quem os diria tão ousados? 

Tão humildes e tão imperiosos, 

tão obstinados!


Como estão próximos os nossos ombros!

Defrontam-se e furtam-se,

negam toda a sua coragem.

De vez em quando,

esta minha mão,

que é uma espada e não defende nada,

move-se na órbita daqueles olhos,

fere-lhes a rota curta,

Poderosa e plácida.



Amor, tão chão de Amor,

Que sensível és…

Sensível e violento, apaixonado. 

Tão carregado de desejos

Acalmas e redobras

e de ti renasces a toda a hora.

Cordeiro que se encabrita e enfurece

e logo recai na branda impotência.



Canseira eterna!

Ou desespero, ou medo. 

Fuga doida à posse, à dádiva.

Tanto bater de asas frementes,

tanto grito e pena perdida…

E as tréguas, amor cobarde?

Cada vez mais longe,

mais longe e apetecidas.
O amor, amor,

que faremos nós de ti

e tu de nós?


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“na casa do campo” de Álamo Oliveira

03.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

naquela onde mais e menos vivo
a minha mãe prevalece e reza
como se me não tivesse
em maio de 45.

casa de campo e da ilha
minha febre água de bica
correndo nos meus sábados de lá ir
escutar os milhos escutar o povo.

mais e menos poeta
as noivas procuram-me de enxoval
nos braços
e eu desenho-lhes os sonhos
risco-lhes as toalhas e
vejo-as ir à igreja casar.

na casa do campo sou asceta.
cresço linho de bordar
ouço os sinos vou à missa
e como povo canto deus
para me cansar.

é nisto que reside
o meu correr de vivo o meu verbo ser-me.

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“Volúpia” de Florbela Espanca

02.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade…
A nuvem que arrastou o vento norte…
— Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço…
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças…

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“Se eu morrer muito novo” de Alberto Caeiro

30.07.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.

Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,

Nem procurei achar nada,

Nem achei que houvesse mais explicação

Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —

Ao sol quando havia sol

E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),

Sentir calor e frio e vento,

E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,

Mas não fui amado.

Não fui amado pela única grande razão —

Porque não tinha que ser.

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“Para ti” de Leonard Cohen

29.07.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Leonard Cohen at the Arena in Geneva, 27 October 2008

Leonard Cohen – Para ti

Para ti
eu serei o judeu do gueto
e dançarei

e
hei de pôr meias brancas


nos meus membros trémulos

e
poços envenenados


por toda a cidade

Para ti
eu serei o judeu apóstata
e contarei ao padre espanhol
o pacto de sangue
que vem no Talmude
e o local onde estão os ossos
escondidos da criança

Para ti
eu serei o judeu banqueiro
e trarei à ruína
um ilustre rei desejado
e darei cabo da sua descendência

Para ti
eu serei o judeu da Broadway
e chorarei nos teatros
pela minha mãe
e irei vender bugigangas
abaixo do preço

Para ti
eu serei o judeu médico
e irei à procura,
por todos os caixotes do lixo,
de prepúcios
para os coser outra vez

Para ti
eu serei o judeu de Dachau
e cairei no lodo
com os membros trémulos
e uma dor inchada
que nenhuma razão compreende

Leonard Cohen
(tradução de Rui Almeida)

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