Nota biográfica

Cláudia Marczak, poeta brasileira. Publicou o seu primeiro livro de poesia aos 16 anos. Publicou mais dois, "Caos" e "Lugar algum". Prepara o seu primeiro romance que irá participar na Bienal do Livro de S. Paulo.

Cláudia Marczak – “Não vejo mais…”

19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não vejo mais sentido
Naquilo que tenho sentido.
Não flutuo em águas rasas.
Mergulho.
A escuridão e o peso do oceano
Me fascinam e apavoram.
Até onde posso ir?
E se eu não souber como voltar?
Não há farol que me guie.
Não há razões.
A profundeza do oceano é meu abrigo.
Seguro e solitário.
Abissal sem fim.

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Poesia 52 – Cláudia Marczak

19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Programa 52 – Cláudia Marczak

Poesia de Cláudia Marczak já se ouviu no Estúdio Raposa, exatamente no programa “Poesia Erótica 36”, intitulado “5poemas5”, ao lado de Affonso Romano de Sant’Anna, Salvador Pliego, Rosa Lobato Faria e Alexandre O’Neill.

Sobre Cláudia Marczak, dizia eu nessa altura, Março de 2.009: “Cláudia Marczak, poeta brasileira, é um caso curioso de internet. Se, no Google, fizermos uma busca pelo seu nome, encontramos dezenas de entradas, a maior parte com um seu famoso poema “O sexo é sagrado”, assim como referências à sua obra, mas e aqui a curiosidade, sem uma linha sobre a sua biografia. Nada. MÚSICA
Pois, passados três anos o Google cumpriu a sua mais apreciada missão: descobrir factos e encontrar pessoas. 
Cláudia Marczak descobriu a declamação do seu poema e escreveu-me acabando com o mistério, para mim, da sua biografia.
Eis o que a Cláudia me disse, sobre si.

“Luis, vou falar um pouco de mim e como a poesia, ou melhor as palavras (é que atualmente não é só a poesia que me basta) apareceram na minha vida. Eu tinha mais ou menos oito anos quando comecei a escrever. Primeiro porque vi alguns poemas de uma colega minha e achei aquilo bonito demais. Depois, porque achei um jeito muito interessante de eu me expressar. A poesia passou a ser um universo paralelo, no qual eu poderia ter acesso sempre que eu quisesse. Aos quinze anos, com ajuda dos meus pais, publiquei um livro com algumas poesias. Era algo muito amador e muito louco para uma adolescente ter várias pessoas a conhecendo de uma forma muito diferente.
A vida, então me levou para muitos outros caminhos, mas nunca parei de escrever. Em 96 o CAOS, uma coletânea de poemas meus, foi colocado na rede. Nele é que estão os poemas que você apresentou no Estúdio Raposa.
Muitas coisas interessantes aconteceram depois que o Caos tornou-se público. Tive poemas colocados em cardápios de um café, aí de Portugal; alguns foram usados em teses, blogs, páginas da rede e o meu poema “Quero um homem” participou de uma peça teatral, encenada no Rio de Janeiro. Em 2010, publiquei pela World Art and Friends, uma editora portuguesa, meu livro Lugar Algum, também de poemas,  No início desse ano o Caos saiu de seu modo virtual e ganhou uma roupagem real, sendo publicado por uma editora independente aqui do Brasil mesmo. Agora estou trabalhando no meu primeiro romance, que deve ser lançado entre maio e junho deste ano e irá participar da bienal do livro de São Paulo.
Sabe que falando assim até parece que o caminho tem sido fácil. Não foi e não é. Encontrar tempo para as minhas palavras, para que eu possa me deixar sentir tudo o que vivo é um desafio constante. Outro desafio é lançar essas palavras no mundo. Elas não são somente minhas. Se ficassem apenas em mim não faria sentido nenhum, elas têm que encontrar morada em outros olhos. Na verdade eu só consigo me entender através das palavras. É como eu falei para um amigo, eu não leio o mundo, eu o escrevo.
Bom,Luis, acho que deu pra saber um pouco de mim. Abaixo vai um poema do Lugar Algum de presente para você. Espero que goste.
Um grande abraço
Cláudia Marczak”

Vamos ouvir, cinco poemas de Cláudia Marczak, entre os quais aquele com que participou no Estúdio Raposa, há três anos. Começamos por esse.

O sexo é sagrado…
O sexo é sagrado, 
como salgadas são as gotas de suor 
que brotam dos meus poros 
e encharcam nossas peles. 
A noite é meu templo 
onde me torno uma deusa enlouquecida 
sentindo teus pelos sobre a minha pele. 
Neste instante já não sou nada, 
somente corpo, 
boca, 
pele, 
pêlos, 
línguas, 
bocas. 
E a vida brota da semente, 
dos poucos segundos de êxtase. 
Tuas mãos como um brinquedo 
passeiam pelo meu corpo. 
Não revelam segredos 
desvendam apenas o pudor do mundo, 
descobrem a febre dos animais. 
Então nos tornamos um 
ao mesmo tempo em que 
a escuridão explode em festa. 
A noite amanhece sem versos, 
com a música do seu hálito ofegante. 
O sol brota de dentro de mim. 
Breves segundos. 
Por alguns instantes dispo-me do sofrimento. 
Eu fui feliz.

Não vejo mais…
Não vejo mais sentido
Naquilo que tenho sentido.
Não flutuo em águas rasas.
Mergulho.
A escuridão e o peso do oceano
Me fascinam e apavoram.
Até onde posso ir?
E se eu não souber como voltar?
Não há farol que me guie.
Não há razões.
A profundeza do oceano é meu abrigo.
Seguro e solitário.
Abissal sem fim.

Sei o gosto…
Sei o gosto do seu beijo,
Seu cheiro me guia
Na escuridão da noite.
Onde está você agora
Que seu espírito engoliu meu coração ?
Por que não o encontro,
Amanhecendo ao meu lado,
Quando meu corpo chora seu abraço…
Não tente me entender,
Apenas me toque,
Deixa seu suor inundar
Minha pele com seu prazer
Beija-me
Possua-me
Que na minha solidão
Já não cabe o tamanho da sua ausência,
Pois quando vi seus olhos
Repletos de luz
O breu da minha tristeza
Iluminou-se de festa
E fez da minha estrada
Um rio de águas mornas
Desaguando no seu mar.
Deixe-me gritar seu nome
Deixe-me sangrar seu coração
Deixe-me lamber em seus lábios
Toda a dor que eles tem
E beber sua saliva de fel.
Não deixe meus olhos se fecharem,
Pois eles possuem os sonhos frágeis
De quem ama demais.

Coração de Vidro
Moram em mim
outros olhos que me vêem.
Neles existo e não me enxergo.
Tenho os olhos de um animal,
arisco e selvagem.
Farejo minhas vontades,
sacio minha sede
nos rios que correm em outros corpos.
Todos únicos sem serem um;
verdadeiros sem serem reais.
Tenho os olhos do pecado que não existe,
e escorrem por eles
lágrimas do sangue da minha culpa.
Tenho os olhos de versos.
Olhos de alma
que mostram meu coração de vidro,
tão pequeno e frágil,
que brilha e lacera em meu peito
inúmeras feridas
da onde brotam palavras vazias,
palavras vãs,
que eu nunca conseguirei entender.

Não sou…
Não sou prisioneira do tempo
Nem ancoro meus sonhos
No solo árido da minha vida medíocre.
Deixo meus olhos flutuarem
Entre céus e infernos
Que a poesia me leva.
Procuro a jóia rara
De um sorriso único
Repleto de angústia e surpresa.
Navego obscura entre
meus medos e meus desejos
sem ter certeza de nada.
Que venha a vida, então,
E penetre em mim
Como um punhal
Rasgando minhas dúvidas
Cortando as amarras
Que me prendem ao possível.
Pertenço a quem me possuir,
Sou do mundo.
Sou minha vida.
Sou o espelho do que jamais serei.

Ouvimos, no programa “Poesia Erótica” nº 52, poesia da poeta brasileira, Cláudio Marczak a quem envio um agradecimento pela disponibilidade na participação do “Poesia Erótica”

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Ana Paula Lavado – “Nenhum verso…”

10.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nenhum verso fala de mim
nem do que eu penso
nem do que eu sinto
nem do que eu sou.

Na realidade,
as palavras são apenas
um jogo de letras
mais ou menos cinzelado
ao gosto de cada um.
E poucos, muito poucos
fazem delas seres vivos e humanos.

Eu não lhes dou vida.
Trabalho-as com mais ou menos nexo
ou talvez sem nexo,
porque dele não sinto falta
nem faz falta o que sou!

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Ana Paula Lavado – “Vem devagar…”

10.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Vem devagar sobre meu leito
Entrega tuas mãos ao meu corpo
E desfolha-me lentamente
Numa doçura desdobrada.

Desliza entre o meu ventre
E navega entre pétalas cerradas
Onde o silêncio em vertigem
Me faz em água dilacerada.

E no desejo anoitecido
Adurirei o beijo da tua boca
Na minha boca queimada!

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Joaquim Namorado – “A voz que me dita…”

07.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala
e é minha e das coisas que me cercam,
de quem encontrei na rua e não conheço
e dos amigos fiéis, de quanto ouvi disperso
na rua, nos cafés, onde estive,
dos livros que leio e dos jornais,
de quanto vejo e vivo como meu;
é tua, meu amor, de quanto é nosso,
só porque sentindo-o o partilhamos,
destas horas que se alongam tristes
e doutras que foram e hão-de ser
da luta, do tormento, da alegria
e da glória de vivê-las plenamente.

Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala:
é a tua, amigo a quem não vejo há tanto
e cuja presença me não esquece,
cuja lembrança em toda a parte aquece
as esperanças comuns pra que vivemos;
é a tua, a quem nunca conheci,
apodrecendo não sei onde
em que distantes exílios e cemitérios secretos,
e de quem nos longos dias te chora
e nas longas noites te espera
Enganando-se que ainda vens
e de quem ouve os teus passos na rua
sabendo que isso é mentira
e fica à noite à janela olhando as esquinas desertas;
é dos teus companheiros resolutos
que as tuas armas empunham com a mesma decisão,
com aquela mão que se estende
para outra mão e a aperta
como se fosse o seu par…

Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que tudo dizes e calas, de onde vens?
de que infância perdida me falas,
que soluçar de mães em ti acode
sob o doce ninar da minha mãe?
é da menina esfarrapada que na rua brinca
nas poças da rua com o sol e esquece
a vida triste lá de casa?
é dos meninos que só a loucura embala
mortos na guerra, mortos de fome e frio,
mortos queimados, de baionetas cravados,
nos fornos crematórios, nos ghettos de Varsóvia,
de Viena, de Belgrado, de qualquer cidade?
é dos meninos de escola da sua idade
aprendendo a ler?
é dos meninos operários da sua idade
aprendendo a trabalhar e a sofrer?
Fel que no sangue da vida se mistura,
amargo destino que se tece
da nossa vida futura.
Voz que tudo dizes e calas,
onde foi, onde?
Em Madrid, em Paris, em Praga?
Em Roma, em Londres, Buenos Aires?
De que pontos cardeais correndo livre vens?
Através de que mordaças me falas?
Em que prisões surdamente gemes e te calas?
É a tua voz clara, Gabriel?
A tua voz dentre dentes quebrados, Fucik?
O teu adeus de esperança, Zoia?
Ou é, Alexandre, o teu incitamento
que nos vem?
Em que língua humana me dizes
quanto é do mundo o sofrimento e a glória?
Em que estrofes os poetas te cantam?
Maja de Granada, inviolada e pura,
Federico ao nosso amor te deu;
de que amargo silêncio te fizeste
no exílio onde Machado morreu?
És a arma invicta e discreta,
voz que pelos homens clama,
és o aço puro e a chama
que para a luta os corações tempera.

Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que me dita os versos segredada,
é do povo o canto e o choro que vem
do fundo desespero em que se move,
é de quanto espera o apagado canto,
epopeia que só a sua luta forja;
é a certeza em cada peito
com um facho de vida em vida transmitido
de que a noite imunda e mais comprida
tem segura madrugada que há-de vir.
Voz que me dita os versos
lentamente da vida dos dias se insinua:
é a voz das coisas e das gentes,
uma dor e um desespero suspenso,
e é a paixão e o grito que levanta,
é a praga que a nossa raiva activa,
o desafio que se lança,
o sofrimento que protesta,
a humildade que se não arrasta,
o orgulho que não fere,
a saudação fraterna, aberta e franca
– é o estalar do chicote
com o ódio que levanta.

É a tua voz, coração do mundo,
é a tua voz ansiosa, a tua voz vibrante,
a tua voz desesperada, a tua voz confiante.
Sejam meus versos a vogal precisa,
bata no meu pulso o coração do mundo.

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Joaquim Namorado – “Sete poemas”

07.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sete pequenos poemas para uma obra de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), ilustrador, que exerceu influência determinante nas modernas artes gráficas portuguesas, quer através de capas, quer de ilustrações que realizou para obras de escritores seus contemporâneos

1
Um menino chora,
sem razão?!…
A mãe limpa com um lenço branco
as lágrimas e chora,
chora porque chora
o seu menino,
sem razão?!…

2
Manta de maltez: sol do
inverno e sombra do
estio, mortalha pronta,
dossel do amor, tecto e
sobrado de não ter casa.
Manto de um rei das
encruzilhadas, sudário
rasgado de dentes e cutiladas;
uma almofada sobre as ortigas…
uma bandeira de Liberdade.

3
Flor da terra, carne dos
homens, de papoilas
bravas entre searas
coroada. Agua da fonte
corrente do rio, pão
ainda quente haste do
trigo. Porto seguro na
vida incerta, paz dos
teus braços da luta
incerta. Esperança e
consolo, pano de linho
sobre as feridas ainda
abertas; bandeira ao
vento. A manhã
que nasce está
nos teus olhos.

4
Os calos da mão apertam cabos
de enxadas quebradas e os
ferros dos arados rasgam
caminhos abertos nas futuras
madrugadas.

5
Um traço largo e profundo
debrua um corpo cansado,
sob a forma rígida de um braço
desenha-se o músculo empedernido
dos trabalhos.
Mapa da vida o teu rosto.
lavrado pelo trabalho,
um pergaminho vincado
da cicatriz da amargura.
Mas no fundo dos teus olhos,
tão firmes e tão seguros,
raia a certa madrugada
dos mundos futuros.

6
Num mundo de maiorais, de
feitores, de cães de guarda,
ficou no pó das estradas a
marca dos nossos passos
continuando outros passos. O
caminho é por aqui, dirá quem
vier depois olhando estes
sinais e disso estará tão certo
que o que ainda é distante lhe
será perto.

7
Sobre a planície cai
uma chuva de lume
do sol a prumo.
A solidão sem sombras
incendeia-se de estrelas
e o silêncio estala
como a pele de frenéticos tambores
batidos furiosamente.
Os homens dobrados para a terra levantam
as cabeças medindo os horizontes rasos e
distantes com olhos ávidos, sem piedade.

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Palavras 161 – Joaquim Namorado

06.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este programa usará, para falar de Joaquim Namorado, o texto disponibilizado no blogue “Outra Margem

Joaquim Namorado, Poeta de Incomodidade

“Metam O burro na gaiola

de doiradas grades
e
tratem-no a alpista
s
e quiserem
- é só um despropósito

Mas esperar dele o trinar

Do canário melodioso

É simplesmente tolo.”

Joaquim Namorado viveu entre 1914 e 1986. Nasceu em Alter do Chão, Alentejo, em 30 de Junho.
Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra, dedicando-se ao ensino. Exerceu durante dezenas de anos o professorado no ensino particular, já que o ensino oficial, durante o fascismo, lhe esteve vedado.
Depois do 25 de Abril, ingressou no quadro de professores da secção de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.
Notabilizou-se como poeta neo-realista, tendo colaborado nas revistas Seara Nova, Sol Nascente, Vértice, etc. Obras poéticas: Aviso à Navegação (1941), Incomodidade (1945), A Poesia Necessária (1966). Ensaio: Uma Poética da Culutra (1994).)

Dizem que foi o Joaquim Namorado quem, para iludir a PIDE e a Censura, camuflou de “neo-realismo” o tão falado “realismo socialista” apregoado pelo Jdanov…
Entre muitas outras actividades relevantes , foi redactor e director da Revista de cultura e arte Vértice, onde ficou célebre o episódio da publicação de pensamentos do Karl Marx, mas assinados com o pseudónimo Carlos Marques. Um dia, apareceu na redacção um agente da PIDE a intimidar: “ó Senhor Doutor Joaquim Namorado, avise o Carlos Marques para ter cuidadinho, pois nós já estamos de olho nele”…

No concelho da Figueira da Foz– considerava-se um figueirense de coração e de acção – chegou a ser membro da Assembleia Municipal, eleito pela APU.
Teve uma modesta residência na vertente sul da Serra da Boa Viagem. Essa casa, aliás, serviu de local para reuniões preparatórias da fundação do jornal Barca Nova.
Muito mais poderia ser dito para recordar Joaquim Namorado, um Cidadão que teve uma vida integra, de sacrifício e de luta, sempre dedicada á total defesa dos interesses do Povo. 
Nos dias 28 e 29 de Janeiro de 1983, por iniciativa do jornal Barca Nova, a Figueira prestou-lhe uma significativa homenagem, que constituiu um acontecimento nacional de relevante envergadura, onde participaram vultos eminentes da cultura e da democracia portuguesa. 
Na sequência dessa homenagem, a Câmara Municipal da Figueira, durante anos, teve um prémio literário, que alcançou grande prestígio a nível nacional.
Santana Lopes, quando passou pela Figueira da Foz, como Presidente de Câmara, decidiu acabar com o “Prémio do Conto Joaquim Namorado”.

Vamos ouvir poemas publicados numa edição de autor e selecionado pela Vértice, em 1966, com o título “Poesia Necessária”.
“A voz que me dita os versos.”

Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala
e é minha e das coisas que me cercam,
de quem encontrei na rua e não conheço
e dos amigos fiéis, de quanto ouvi disperso
na rua, nos cafés, onde estive,
dos livros que leio e dos jornais,
de quanto vejo e vivo como meu;
é tua, meu amor, de quanto é nosso,
só porque sentindo-o o partilhamos,
destas horas que se alongam tristes
e doutras que foram e hão-de ser
da luta, do tormento, da alegria
e da glória de vivê-las plenamente.

Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala:
é a tua, amigo a quem não vejo há tanto
e cuja presença me não esquece,
cuja lembrança em toda a parte aquece
as esperanças comuns pra que vivemos;
é a tua, a quem nunca conheci,
apodrecendo não sei onde
em que distantes exílios e cemitérios secretos,
e de quem nos longos dias te chora
e nas longas noites te espera
Enganando-se que ainda vens
e de quem ouve os teus passos na rua
sabendo que isso é mentira
e fica à noite à janela olhando as esquinas desertas;
é dos teus companheiros resolutos
que as tuas armas empunham com a mesma decisão,
com aquela mão que se estende
para outra mão e a aperta
como se fosse o seu par…

Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que tudo dizes e calas, de onde vens?
de que infância perdida me falas,
que soluçar de mães em ti acode
sob o doce ninar da minha mãe?
é da menina esfarrapada que na rua brinca
nas poças da rua com o sol e esquece
a vida triste lá de casa?
é dos meninos que só a loucura embala
mortos na guerra, mortos de fome e frio,
mortos queimados, de baionetas cravados,
nos fornos crematórios, nos ghettos de Varsóvia,
de Viena, de Belgrado, de qualquer cidade?
é dos meninos de escola da sua idade
aprendendo a ler?
é dos meninos operários da sua idade
aprendendo a trabalhar e a sofrer?
Fel que no sangue da vida se mistura,
amargo destino que se tece
da nossa vida futura.
Voz que tudo dizes e calas,
onde foi, onde?
Em Madrid, em Paris, em Praga?
Em Roma, em Londres, Buenos Aires?
De que pontos cardeais correndo livre vens?
Através de que mordaças me falas?
Em que prisões surdamente gemes e te calas?
É a tua voz clara, Gabriel?
A tua voz dentre dentes quebrados, Fucik?
O teu adeus de esperança, Zoia?
Ou é, Alexandre, o teu incitamento
que nos vem?
Em que língua humana me dizes
quanto é do mundo o sofrimento e a glória?
Em que estrofes os poetas te cantam?
Maja de Granada, inviolada e pura,
Federico ao nosso amor te deu;
de que amargo silêncio te fizeste
no exílio onde Machado morreu?
És a arma invicta e discreta,
voz que pelos homens clama,
és o aço puro e a chama
que para a luta os corações tempera.

Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que me dita os versos segredada,
é do povo o canto e o choro que vem
do fundo desespero em que se move,
é de quanto espera o apagado canto,
epopeia que só a sua luta forja;
é a certeza em cada peito
com um facho de vida em vida transmitido
de que a noite imunda e mais comprida
tem segura madrugada que há-de vir.
Voz que me dita os versos
lentamente da vida dos dias se insinua:
é a voz das coisas e das gentes,
uma dor e um desespero suspenso,
e é a paixão e o grito que levanta,
é a praga que a nossa raiva activa,
o desafio que se lança,
o sofrimento que protesta,
a humildade que se não arrasta,
o orgulho que não fere,
a saudação fraterna, aberta e franca
– é o estalar do chicote
com o ódio que levanta.

É a tua voz, coração do mundo,
é a tua voz ansiosa, a tua voz vibrante,
a tua voz desesperada, a tua voz confiante.
Sejam meus versos a vogal precisa,
bata no meu pulso o coração do mundo.

Agora, sete pequenos poemas para uma obra de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), ilustrador, que exerceu influência determinante nas modernas artes gráficas portuguesas, quer através de capas, quer de ilustrações que realizou para obras de escritores seus contemporâneos

1
Um menino chora,
sem razão?!…
A mãe limpa com um lenço branco
as lágrimas e chora,
chora porque chora
o seu menino,
sem razão?!…

2
Manta de maltez: sol do
inverno e sombra do
estio, mortalha pronta,
dossel do amor, tecto e
sobrado de não ter casa.
Manto de um rei das
encruzilhadas, sudário
rasgado de dentes e cutiladas;
uma almofada sobre as ortigas…
uma bandeira de Liberdade.

3
Flor da terra, carne dos
homens, de papoilas
bravas entre searas
coroada. Agua da fonte
corrente do rio, pão
ainda quente haste do
trigo. Porto seguro na
vida incerta, paz dos
teus braços da luta
incerta. Esperança e
consolo, pano de linho
sobre as feridas ainda
abertas; bandeira ao
vento. A manhã
que nasce está
nos teus olhos.

4
Os calos da mão apertam cabos
de enxadas quebradas e os
ferros dos arados rasgam
caminhos abertos nas futuras
madrugadas.

5
Um traço largo e profundo
debrua um corpo cansado,
sob a forma rígida de um braço
desenha-se o músculo empedernido
dos trabalhos.
Mapa da vida o teu rosto.
lavrado pelo trabalho,
um pergaminho vincado
da cicatriz da amargura.
Mas no fundo dos teus olhos,
tão firmes e tão seguros,
raia a certa madrugada
dos mundos futuros.

6
Num mundo de maiorais, de
feitores, de cães de guarda,
icou no pó das estradas a
marca dos nossos passos
continuando outros passos. O
caminho é por aqui, dirá quem
vier depois olhando estes
sinais e disso estará tão certo
que o que ainda é distante lhe
será perto.

7
Sobre a planície cai
uma chuva de lume
do sol a prumo.
A solidão sem sombras
incendeia-se de estrelas
e o silêncio estala
como a pele de frenéticos tambores
batidos furiosamente.
Os homens dobrados para a terra levantam
as cabeças medindo os horizontes rasos e
distantes com olhos ávidos, sem piedade.

Ouviram o Palavras de Ouro 161 dedicado a Joaquim Namorado, o Poeta de Incomodidade.

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Encandescente – “Curriculum Vitae”

04.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nome:
Já me chamaram uns quantos
Apelido-me outros tantos
Alguns tão inomináveis
Que nem sequer os cito.
Idade:
A suficiente, não a bastante
Para ter juízo e não tenho
Para ser conforme e não sou
Para não sonhar tanto e sonho
Mas também para saber
Que já não serei o Che e não farei revolução.
Nacionalidade:
Imposta.
Nasci onde me pariram
Onde o acaso o ditou
Não escolhi pais ou pátria
Estou aqui. Calhou.
Estado:
Muitas vezes zangada
Outras vezes cansada
Com tanta merda que vejo
E por nada poder fazer
Para mudar o estado das coisas
Por isso o estado mais frequente
É a precisar de mudança e em ebulição.
Habilitações literárias:
Algumas
Tenho as estantes dobradas
Com o peso dos livros que tenho.
Formação académica:
Nenhuma
Mas sou muito bem educada
Até me chegar a mostarda ao nariz
E como nasci tesa e plebeia
Sem ascendentes importantes
E não bebi chá em pequenina
O verniz estala num instante.
Experiência:
Alguma
Nenhuma em áreas relevantes
Algumas muito interessantes
Outras pouco recomendáveis
Mas…
Para este curriculum não interessa nada.
Como o que vigora neste país
É a lei do desenrasca
Eu que tenho os nomes que me chamo
A idade que me apetecer
E sou uma pindérica sem cultura académica
Num país só de doutores
Considero-me qualificada
Para me desenrascar
Em qualquer função e em qualquer lugar.

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Carlos Bessa – “Lista de compras”

03.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Fazia a lista de compras com um ar ligeiramente
Sonhador. Amachucava pedacinhos de papel
Que nos fim pareciam smarties.
– Estou sempre contigo, sempre.
– E tu pesas-me.
– Sem ti, sinto-me num vácuo.
– És de chumbo.
E na lista de compras lá vinha um quilo de arroz
Um litro de azeite, duas latas de atum.
O sol, como uma flor, fazia da cozinha
Uma festa, a que as cortinas conferiam ar de templo.
No fogão ardia o leite, ouvia-se o chiar
Da máquina de café e o coração
Como um atleta, cada vez mais pálido
Cada vez mais longe.

do seu livro de 2003 “Em Trânsito”

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Carlos Bessa – “A marmita, todas as noites a marmita”

03.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

De alumínio e do tanto uso, de um cinza

Baço, encardido. Talvez por isso um dia disse-o 

Em voz alta com as lágrimas, ali, longe de tudo

Num banco de Lisboa.



O frio que passou do carro para o autocarro.

As tardes de chuva quando chegava no chão

Sentado ao lado do condutor, ao lado do deus

Que o trazia no mesmo frio, na mesma posição de chinês.



Sem nos dizer do que passava, das suas alegrias

ou tristezas. Assim até o b.i.

A lei portuguesa acenar e dizer dos estigmas

Do trabalho que se deve em nome da mesa.



Não produzia molas suficientes e a marmita

Arrumada para sempre no fundo do armário

Ficou esquecida, mas não o sofrimento.

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Alberto Caeiro – “A espantosa…”

02.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

De, Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos, Vol. I , Obras Completas, de
Fernando Pessoa, pág. 219/220

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Ary dos Santos – “Infância”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não minha mãe. Não era ali que estava. 

Talvez noutra gaveta. Noutro quarto. 

Talvez dentro de mim que me apertava 

contra as paredes do teu sexo-parto.

A porta que entretanto atravessava 

talhada no teu ventre de alabastro

abria-se fechava dilatava.

Agora sei: dali nunca mais parto.

Não minha mãe. Também não era a sala

nem nenhum dos retratos de família 

nem a brisa que a vida já não tem.

Talvez a tua voz que ainda me fala… 

… o meu berço enfeitado a buganvília… 

Tenho tantas saudades, minha mãe!

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Ary dos Santos – “Memória de Adriano”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nas tuas mãos tomaste uma guitarra 

copo de vinho de alegria sã 

sangria de suor e de cigarra 

que à noite canta a festa de amanhã.

Foste sempre o cantor que não se agarra

o que à terra chamou amante e irmã 

mas também português que investe e marra 

voz de alaúde rosto de maçã.

O teu coração de ouro veio do Douro 

num barco de vindimas de cantigas 

tão generoso como a liberdade.

Resta de ti a ilha dum tesouro

a jóia com as pedras mais antigas.

Não é saudade, não! É amizade.

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Ary dos Santos – “Telegrama para Gomes Leal”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tia Maria Poesia a acabar. 

Stop. Vem depressa. Testamento incerto. 

É certo que não tinha que deixar

mais que um saldo no banco a descoberto.

Anda a crítica toda a farejar.

Os enteados rondam muito perto.

Volta depressa ó meu. O teu lugar 

é aqui ajudando neste aperto.

Toma a carreira Inferno-Portugal.

Fizeste-a tantas vezes! E a viagem 

agora de caixão é mais barata.

Vem-me ajudar a consolar a tia. 

A Natália está lá. Não a Sofia

Cara-de-cu que sempre foi ingrata.

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Ary dos Santos – “Soneto de Inês”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dos olhos corre a água do Mondego

Os cabelos parecem os choupais 

Inês! Inês! Rainha sem sossego 

dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego 

Amor que torna os homens imortais.

Inês! Inês! Distância a que não chego

Morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes os teus braços 

são gaivotas pousadas no regaço

dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos

e tu morrendo com os olhos baços. 

Inês! Inês! Inês de Portugal.

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Ary dos Santos – “Sonata de Outono”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Inverno não ainda mas Outono

a sonata que bate no meu peito

Poeta distraído cão sem dono

até na própria cama em que me deito.

Acordar é a forma de ter sono

O presente o pretérito imperfeito

Mesmo eu de mim me abandono 

se o vigor que me devo não respeito.

Morro de pé, mas morro devagar.

A vida é afinal o meu lugar 

e só acaba quando eu quiser.

Não me deixo ficar. Não pode ser.

Peço meças ao Sol, ao Céu, ao Mar

Pois viver é também acontecer.

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Ary dos Santos – “Poesia-orgasmo”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

De sílabas de letras de fonemas 

se faz a escrita. Não se faz um verso. 

Tem de correr no corpo dos poemas 

o sangue das artérias do universo.

Cada palavra há-de ser um grito 

um murmúrio um gemido uma erecção

que transporte do humano ao infinito 

a dor o fogo a flor a vibração

A Poesia é de mel ou de cicuta? 

Quando um poeta se interroga e escuta

ouve ternura luta espanto ou espasmo?

Ouve como quiser seja o que for

Fazer poemas é escrever amor

e poesia o que tem de ser é orgasmo.

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Ary dos Santos – “Insónia”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

As noites — escorpiões suicidados

Com o seu próprio veneno nas entranhas 

ressuscitam depois em madrugadas 

cada vez mais azuis e mais estranhas.

São insónias tecendo alucinadas 

uma teia de horas e de aranhas 

patas tácteis peludas eriçadas 

com o peso latente das montanhas.

E por dentro dos olhos um perfil 

de ferro e fogo deixa-nos queimados 

selados como a chuva e como o vento.

Será possível que depois de Abril 

ainda adormeçamos acordados 

neste país-raiz de sofrimento?

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Ary dos Santos – “Ao meu falecido irmão, Manuel Maria Barbosa du Bocage”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Meu sacana de versos! Meu vadio.

Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.

Lisboa é uma sarjeta. E um vazio.

E é raro o poeta que entre nós faz escola.

Mastigam ruminando o desafio.

São uns merdosos que nos pedem esmola.

Aos vinte anos cheiram a bafio

têm joanetes culturais na tola.

Que diria Camões, nosso padrinho 

ou o Primo Fernando que acarinho 

como Pessoa viva à cabeceira?

O que me vale é que não estou sozinho

ainda se encontram alguns pés de linho 

crescendo não sei como na estrumeira!

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Cristina Guedes – “Tocar-me te”

30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar



dedos devorando pressa e tempo

urgência desejo, arfar, corrida

negação da paz esta guerra

fúria que exige ser combatida.

fechar os olhos ter-te onde o desejo queima mais perto

fonte generosa, drink indigesto

testa em brasa, beber-te

toco o orgasmo e esgoto o cio

apalpo o meu seio, ardente de frio

invento beijos, flagelo hemisférios

provoco-me, então, o doce arrepio

vibramos os dois, em camas diferentes,

no vazio do nosso leito

combato alguns dos teus medos, ainda sinto o teu coração correr

qual cavalo, no meu peito entre o lençol de algodão

e agora já calmos, os teus nos meus dedos.

masturbação.

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Alberto de Lacerda – “Tese e Antítese”

26.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

tese

Nunca mais
E arrasto comigo pelo braço da esperança
As horas marejadas as pedras do desgosto
A fome de amor
A cavernosa rouca diamantina
Fome de amor

Nunca mais e sobre os altos silêncios
No tumulto insensato
À beira do abismo
Ressuscito
Os rostos bem amados
Traiçoeiros
Dou-lhes andas
Dou-lhes palhaços
A infância que não tive
E que perdi
A paz que não é minha

Nunca mais

Agora só há abismos não há rostos

Passem duendes príncipes Antinos
Mas de largo

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Alda do Espírito Santo – “Para lá da praia”

26.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Baía morena da nossa terra
vem beijar os pezinhos agrestes
das nossas praias sedentas,
e canta, baía minha
os ventres inchados
da minha infância,
sonhos meus, ardentes
da minha gente pequena
lançada na areia
da praia morena
gemendo na areia
da Praia Gamboa.

Canta, criança minha
teu sonho gritante
na areia distante
da praia morena.

Teu tecto de andala (1)
à berma da praia
teu ninho deserto
em dias de feira,
mamã tua, menino
na luta da vida.

Gamã pixi (2) à cabeça
na faina do dia
maninho pequeno, no dorso ambulante
e tu, sonho meu, na areia morena
camisa rasgada,
no lote da vida,
na longa espera, duma perna inchada

Mamã caminhando p’ra venda do peixe
e tu, na canoa das águas marinhas
– Ai peixe à tardinha
na minha baía
mamã minha serena
na venda do peixe
pela luta da fome
da gente pequena.

(1) Andala: folha de palmeira;
(2) Gamã pixi: gamela com peixe.

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Carlos Eurico da Costa – “Neste dia…”

26.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Neste dia meu amor
os meus dedos são o candelabro que te ilumina
o único existente.

E o homem
sua esfera perdida em mãos alheias
é o objecto de malabarismo
o insecto
voltejando cega a luz que lhe irradiam
o límpido cristal corrompido
o defunto.

E este patíbulo onde o próprio carrasco se enforcará
eu o digo
será erguido como símbolo de todos os homens.

Aqui a hora vai sendo longínqua meu amor e solene.
O caminho é grande o tempo tão pouco
tenhamos muita esperança e muito ódio
e vítreas flores a ornar o teu cabelo
porque serei o homem para as transportar
e tu a última mulher que as aceitará.

E enquanto assim for
erguer-se-á a nuvem de múltiplas estrelas
a nebulosa
que dizem estar a milhões de anos-luz
mas não acreditemos bem o sabes
porque em verdade a temos em nossas próprias mãos
oculta para a contemplarmos agora.

in A Única Real Tradição Viva Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa de Perfecto E. Cuadrado
Assírio & Alvim – 1998

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Carlos Eurico da Costa – “A Cidade de Palaguin”

26.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Na cidade de Palaguin

o dinheiro corrente era olhos de crianças

Em todas as ruas havia um bordel

e uma multidão de prostitutas

frequentava aos grupos casas de chá.

Havia dramas e histórias de era uma vez

havia hospitais repletos:

o pus escorria da porta para as valetas.

Havia janelas nunca abertas

e prisões descomunais sem portas.

Havia gente de bem a vagabundear

com a barba crescida.

Havia cães enormes e famélicos

a devorar mortos insepultos e voantes.

Havia três agências funerárias

em todos os locais de turismo da cidade.

Havia gente a beber sofregamente

a água dos esgotos e das poças.

Havia um corpo de bombeiros

que lançava nas chamas gasolina.



Na cidade de Palaguin

havia crianças sem braços e desnudas

brincando em parques de pântanos e abismos.

havia ardinas a anunciar

a falência do jornal que vendiam;

havia cinemas: o preço de entrada

era o sexo de um adolescente

(as mães cortavam o sexo dos filhos

para verem cinema).

Havia um trust bem organizado

para exploração do homossexualismo

havia leiteiros que ao alvorecer

distribuíam sangue quente ao domicílio.

Havia pobres a aceitar como esmola

sacos de ouro de trezentos e dois quilos.

E havia ricos pelos passeios

implorando misericórdia e chicotadas.


Na cidade Palaguin

havia bêbados emborcando ácidos

retorcendo-se em espasmos na valeta.

Havia gatos sedentos

a sugar leite nos seios das virgens.

Havia uma banda de música

que dava concertos com metralhadoras;

havia velhas suicidas

que se lançavam das paredes para o meio da multidão.

Havia balneares públicos

com duches de vitríolo – quente e frio

– a população banhava-se frequentes vezes.



Na cidade de Palaguin

havia Havia HAVIA…



Três vezes nove um milhão.

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Daniel Faria – “”Sei que…”

26.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, da operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar

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Gastão Cruz – “A roupa envolve-nos”

22.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A roupa envolve-nos
a paragem do mar cresce contigo
a língua e o sentido tudo anda
tão ocupado tão cansado e destruído
que a roupa em
torno morre como um foco de ruído

O movimento cerca esta mudez
o mar desidratado é o abismo
onde revives
Viste os vales instáveis do mar
mas para que é perguntar senão que se fez de ti
O fogo sob as vozes que não ouves
A língua vive ainda?

Inscrevo na memória tumefacta
mais uma imagem
Esses corpos nascem
O que posso dizer para cobri-los?
Ouves? Está comigo
a mortalidade da tua vida

Como falar contigo? Mas o som
produzido era tanto
que as cordas se formavam com a sua saída
retomavam a forma destruída
enquanto
tudo o que te dizia dividia
um som tempestuoso

Na ocasião da queda
desses algum
olha as áreas correspondentes no mar
volta transforma-se
é um sinal de
contradição
e sob a chuva contínua de relâmpagos revive

Porém o som inibe-te prossegues
sem segurança o canto a turva cítara
vence-te não o canto repetido
Essas cordas do peito já distensas

submetem-se ao silêncio poderias
escolhê-las porém sempre repetes
os nomes desses corpos a mudez
intimida-te assim a poesia

nasce com o rumor dos próprios corpos
com o bater dos nomes entre os ombros
tão dóceis mar de músculos

mudos
o coração do corpo
repetindo os nomes turvos

Como é possível termos esquecido a linguagem?
Comparámos os corpos Se os descrevo
agora que deixámos de falar
esqueço a igualdade e nela cessa
a possibilidade de falar

É um erro a cidade alguma vez a
cantaste?
Mas já não é possível a verdade é que
definitivamente nela morres
Por isso escolherás o teu estilo
de novo por palavras errarás

Na praia exterminada não pudemos
cantar a liberdade
sobre o teu corpo correm turvas asas
de entre as pedras
levantas a cabeça enquanto cais

Depois a roupa gera e espalha a escuridão
cada corpo isolado se transforma
sob as asas que
o cobrem

Desencontramo-nos
a terra recomeça a deter-te
preciso de dizer
esse teu nome
Mas não ouças a minha fala transformada

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João Miguel Fernandes Jorge – “Como conversámos…”

22.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Era o quarto de azulejo. 

O cheiro do tabaco. 

O cão

os olhos para que visse o de fora. 

Cego 

conhecendo a terra sem se conhecer. 

Em nós 

fizémos sair a lua o sol.

Em todos

o visível o invisível.



Éramos nós e estávamos no fim do mundo.



Como conversámos aquela noite. Era o quarto de azulejo 

a mesa de braseira o cheiro do tabaco. 

Andara sem destino durante meses

e, aquela noite surgia com o simples virar a 

página de um livro, 

quando uma palavra torna claro o enredo de longos capítulos. 

Assim duas vidas se revelam.



Éramos nós. Estávamos no fim do mundo, quero dizer, 

encontrei-me de súbito na minha vida, 

na sua vida.

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João Pedro Grabato Dias – “A mulherinha…”

22.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A mulherinha estava a pedir pega-me

naquele olhar de corna mansa, e então

fiz das tripas menores um coração

embrulhei-o em luxúria e num béguin

impetuoso e urgente, qual salame

perverso a mugir trinca-me glutão

abalei a voar no avião

rotativo daquele olhar. Eu chame-me

cão gravata se não valeu a pena!

Ó licor da vingança, ó bruta cena!

Tinha, enfim, sob a espora, sob a mão

soba espúrio, soba ex-puro a esposa

grata do chefe, e sob a esposa a musa

ingrata dum tinteiro da nação.

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Álvaro de Campos – “Tabacaria”

21.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não sou nada. 

Nunca serei nada. 

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto, 

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém 
sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por 
gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, 

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos 
nos homens, 

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de 
nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tomando-se esta casa e este lado 
da rua 

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida 
apitada 

De dentro da minha cabeça, 

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos 
na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu. 

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo 

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo. 

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. 

A aprendizagem que me deram, 

Desci dela pela janela das traseiras da casa,

Fui até ao campo com grandes propósitos. 

Mas lá encontrei só ervas e árvores, 

E quando havia gente era igual à outra. 

Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei-de 
pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? 

Ser o que penso?
Mas penso ser tanta coisa! 

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode 
haver tantos!

Génio?
Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um, 

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. 

Não, não creio em mim.

Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas 
certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos 
certo?

Não, nem em mim …

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 

Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
– 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -, 

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar 

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que 
tenha razão. 

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que 
Cristo, 

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela; 

Serei sempre o que não nasceu para isso; 


Serei sempre só o que tinha qualidades; 

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de 
uma parede sem porta, 

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, 

E ouviu a voz de Deus num poço tapado. 

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente 

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 

Mas acordamos e ele é opaco,

Levanta-mo-nos e ele é alheio, 

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena; 

Come chocolates! 

Olha que não há mais metafisica no mundo senão chocolates. 

Olha que as religiões todas não ensinam mais do que 
a confeitaria.

Come, pequena suja, come! 

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que 
comes! 

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de 
estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 

A caligrafia rápida destes versos, 

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem 
lágrimas, 

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas, 

E fico em casa sem camisa. 

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, 

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, 

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, 

Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê -, 

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que 
inspire!

Meu coração é um balde despejado. 

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada. 

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, 

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, 

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses 
nem cresses 

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer 
nada disso); 

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem 
cortam o rabo 

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube, 

E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado. 

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, 
e perdi-me. 

Quando quis tirar a máscara, 

Estava pegada à cara. 

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido. 

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha 
tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário 

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis, 

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse, 

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo, 

Como um tapete em que um bêbado tropeça 

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. 

Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei. 

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. 

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos 
também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos. 

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 


Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como 
gente 

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo 
de coisas como tabuletas, 

Sempre uma coisa defronte da outra, 

Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de 
mistério da superfície, 

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem 
outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 

Semiergo-me enérgico, convencido, humano, 

E vou tencionar escrever estes versos em que digo 
o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. 

Sigo o fumo como uma rota própria, 

E gozo, num momento sensitivo e competente, 

A libertação de todas as especulações 

E a consciência de que a metafísica é uma consequência 
de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando. 

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 

Talvez fosse feliz.) 
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira 
das calças?). 

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafisica. 

(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo 

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono 

da Tabacaria sorriu.

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Álvaro de Campos – “Ao volante do Chevrolet…”

21.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, 

Ao luar o ao sonho, na estrada deserta, 

Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco 

Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça, 

Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo, 

Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter, 

Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas
seguir?

Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,

Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa. 

Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem 
consequência,

Sempre, sempre, sempre,

Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma, 

Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida …

Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,

Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram. 

Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita. 

Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo! 

Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas! 

Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre – sim, o casebre – à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe. 

O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade, 

É agora uma coisa onde estou fechado, 

Que só posso conduzir se nele estiver fechado, 

Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.

A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha. 

Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará:
Aquele é que é feliz. 

Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima.

Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real. 

Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da 
cozinha

No pavimento térreo, 

Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,

E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que 
me perdi.

Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel 
emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a
noite,

Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente, 

Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço, 

E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,

Acelero …

Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei
ao vê-lo sem vê-lo,


À porta do casebre, 
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,

O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,

Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação, 

Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,

Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim …

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