Nota biográfica

Vinicius de Moraes (Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1913 — Rio de Janeiro, 9 de julho de 1980) foi um diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro. Poeta essencialmente lírico, também conhecido como "poetinha", apelido que lhe teria atribuído Tom Jobim. Conhecido como um boêmio inveterado, a sua obra é vasta, passando pela literatura, teatro, cinema e música.

Vinícius de Moraes – “Menina como uma flor”

18.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

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Porque és uma menina como uma flor e tens uma voz que não sai do ouvido, eu prometo-te amor eterno, salvo se murchares, o que, aliás, não vais nunca porque acordas tarde, tens um ar acanhado e gostas de brigadeiros: quero dizer, doces feitos com leite condensado.
E porque és uma menina como uma flor e choraste na estação de Roma porque as nossas malas seguiram sozinhas para Paris, e morreste de pena delas que partiam assim, no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
E porque sonhas que estou a deixar-te p’ra trás, transferes o teu t.p.m. para o meu quotidiano, e implicas comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de seres assim, tão subliminar.
E porque quando começaste a gostar de mim procuravas saber por todos os meus modos, com que camisola desportiva ia sair para fazer mimetismo de amor, só para te vestires de forma parecida.
E porque tens um rosto que está sempre um brinco, mesmo quando apanhas o cabelo, e pareces-te com uma santa moderna, e andas lentamente, e falas em 33 rotações mas sem aborreceres.
E porque és uma menina como uma flor, eu te predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma escapadinha marota para olhar para o lado, aí sim podes ir embora, eu compreendo.
E porque és uma menina como uma flor e tens um andar de pajem medieval; e porque quando cantas nem um mosquito ouve a tua voz, e desafinas tão bem que logo de seguida consertas, e às vezes acordas no meio da noite para cantar, feito uma doida.
E tens um ursinho chamado Nounouse e falas-lhe mal de mim, e ele escuta e não concorda porque é muito meu amigo, e quando te sentes perdida e sozinha no mundo deitas-te agarrada a ele, choras como um bebé e fazes um beicinho deste tamanho. 


E porque és uma menina que não pisca nunca e os teus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e és capaz de ficar horas a olhar-me.
E porque és uma menina que tem medo de ver a cara ao espelho, e quando te olho por muito tempo, começas a ficar nervosa até eu jurar-te que estou a brincar.
E porque és uma menina como uma flor e cativaste o meu coração e adoras puré de batata, eu te peço que me consagres teu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo tu uma menina como uma flor, peço-te também que nunca mais me deixes sozinho, como neste último mês em Paris; fica tudo como uma rua silenciosa e escura que não vai dar a lugar nenhum; os móveis ficam parados, olham-me com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam amar-me porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê.
E porque tu és a única menina como uma flor que conheço, escrevi uma canção tão bonita para ti, “Minha namorada”, afim de que, quando morrer, tu, se por acaso não morreres também, fiques deitadinha abraçada ao Nounouse a cantar sem voz aquela parte em que digo que tens de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.
E já que és uma menina como uma flor e eu estou agora a ver-te subir – tão pura entre as marias-sem-vergonha – a ladeira que te traz ao nosso ninho, aqui nestas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando disseste que me amavas, desata a bater cada vez mais depressa.
E porque me levanto para recolher-te no meu abraço, e o mato à nossa volta faz-se murmuroso e enche-se de vaga-lumes enquanto a noite desce com os seus segredos, as suas mortes, os seus espantos – eu sei, eu sei que o meu amor por ti é feito de todos os amores que já tive, e tu és a filha predilecta de todas as mulheres que amei; e que todas as mulheres que amei, como tristes estátuas ao longo da álea de um jardim nocturno, foram de mão em mão passando-te até mim, cuspindo-te no rosto e enfrentando a tua fronte de grinaldas; foram passando-te até mim entre cantos, súplicas e vociferações – porque tu és linda, porque tu és meiga e sobretudo… porque és uma menina como uma flor.

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“O Rei Lua e a Serpente”

18.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Povo Karanga do Zimbabwe

O primeiro homem criado por Mwari vivia inicialmente no fundo da terra. O seu nome era Mwetsi. Apesar dos avisos do seu criador, quis viver sobre a terra, que era nesse tempo seca e estéril. Não havia aí ervas, nem arbustos, nem árvores.
Mwetsi começou a lamentar-se da solidão, e Mwari enviou-lhe uma esposa, Estrela da Manhã. Esta mostrou a Mwetsi como fazer fogo. Deitaram-se de cada um dos lados da chama. Ao chegar a noite, Mwetsi introduziu o seu dedo num copo cheio de óleo e ungiu o corpo da Estrela da Manhã. O ventre da mulher inchou-se e, na manhã seguinte, ela concebeu as ervas, os arbustos e as árvores que se expandiram sobre a terra. As árvores cresceram até que as suas copas tocaram no céu. Então, começou a chover. O par viveu em abundância. Mwetsi construiu uma casa, fabricou enxadas e cultivou a terra.
Mas, ao fim de dois anos, Mwari que criar Mwetsi veio procurar Estrela da Manhã e levou-a para a lagoa primordial. Mwetsi lamentou-se durante oito dias e Mwari concedeu-lhe outra esposa, Estrela da Tarde, predizendo-lhe que ela iria levar à sua perda. Com a chegada da noite, Mwetsi deitou-se, como era seu hábito, do outro lado do fogo.
Mas Estrela da Tarde insistiu para que ele dormisse na sua cama. Insistiu também para que lhe afagasse o ventre e os seios com o óleo. Copularam. De madrugada, Estrela da Tarde concebeu galinhas, carneiros e cabras. Na manhã seguinte, foi a vez dos búfalos e antílopes virem à luz. No quarto dia, apareceram os rapazes e raparigas. Nascidos de manhã, os rapazes tornavam-se adultos à tarde. Na tarde do quarto dia, sobreveio uma violenta tempestade.
Estrela da Tarde advertiu o seu marido que corria perigo de morte. No entanto, este quis ainda assim copular com ela, e na manhã seguinte deu à luz leões, leopardos, serpentes e escorpiões. Na tarde do quinto dia, Estrela da Tarde recusou-se a copular com o seu marido; propôs-lhe que copulasse com as filhas, tornadas núbeis. Estas deram à luz filhos que, nascidos de manhã, se tornavam adultos à tarde. Mwetsi tornou-se o rei de um povo numeroso.
Mais tarde, Estrela da Tarde copulou com Serpente e passou a viver com ele. Tornou-se estéril. Mwetsi tentou recuperá-la, mas ela recusou-se a deixá-lo aproximar-se. No momento em que ele se deitou na sua cama, Serpente surgiu e mordeu-o. Mwetsi ficou doente. A chuva deixou de cair, as águas ficaram insalubres e a morte instalou-se entre os homens. Os filhos de Mwetsi estrangularam o seu pai e enterraram-no com Estrela da Tarde. Escolheram outro rei.

Trad.: Manuel João Ramos

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Lenda – “A Origem do Homem”

17.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Povo Selk’nam da Terra do Fogo

Chegado à terra depois de percorrer os recantos do universo, Kenos descansou. Na altura, era um ser só e a própria terra não conhecera ainda outra criatura que não Kenos. Olhou em seu redor e notou que toda a terra era um enorme terreno pantanoso. Tomou então um punhado de terra húmida e com ela esculpiu o sexo masculino. Satisfeito com o resultado, tomou de imediato outro pedaço de terra e esculpiu o sexo feminino. Exausto, deixou as suas criações lado a lado para que secassem durante a noite e foi dormir. Durante a noite, as esculturas de areia uniram-se e engendraram qualquer coisa como um ser humano. Este ser cresceu rapidamente e fez-se adulto num só dia. Afastados durante o dia, os dois sexos voltaram a unir-se na noite seguinte e daqui nasceu o segundo homem. Assim foi durante muitos dias; as esculturas de terra húmida separavam-se durante o dia e voltavam a unir-se à noite, trazendo à vida novas criaturas.
Chegou uma altura em que a terra estava já povoada de seres humanos e os homens haviam finalmente aprendido a fecundar as mulheres. A partir de então, os seres humanos pareciam não querer outra coisa senão reproduzir-se e a terra cedo ficou sobrepovoada. Então, Kenos, o Pai do homem, resolveu intervir. Inquietado com a situação, o criador perguntava-se o que fazer. Surgiram-lhe apenas duas opções. Ou privava os seres humanos do poder da auto procriação ou teria de arranjar forma de lhes dar um espaço maior. Decidiu então usar as suas forças para erguer o céu que pesava sobre a terra. Assim fez e é a Kenos que os homens devem o espaço que hoje têm para se mover e a liberdade de procriar.

Trad.: Manuel João Magalhães

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“A Mulher que criou a Terra”

16.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

América do Norte – Iroqueses
(Mito da criação)

No início não existia terra para se viver, mas lá em cima, no grande azul, habitava uma mulher sonhadora. Uma noite sonhou com uma árvore coberta de rebentos brancos, que iluminava o céu quando as suas flores se abriam, mas que trazia uma terrível escuridão quando elas se voltavam a fechar. O sonho assustou-a, de modo que foi ter com os sábios homens velhos que viviam com ela, na sua aldeia no céu, e contou-lhes.
«Puxem esta árvore mais para cima», implorou-lhes, mas eles não entendiam. Tudo o que faziam era escavar à volta das raízes, tentando arranjar espaço para haver mais luz. Então a árvore caiu no buraco que eles fizeram e desapareceu. Depois disso, deixou de haver luz, apenas escuridão.
Os homens velhos começaram a ter medo das mulheres e dos seus sonhos. Era dela a culpa da luz se ter ido para sempre.
Então puxaram-na até ao buraco e empurraram-na. Sentiu-se a cair, para o fundo, em direcção ao grande vazio. Debaixo dela não existia nada para além de uma terrível quantidade de água. Esta estranha mulher sonhadora do grande azul, certamente teria ficado desfeita em mil bocados, não fosse um peixe-águia que veio em seu socorro. As suas penas formaram uma almofada que permitiu à mulher uma aterragem suave por cima das ondas.
Entretanto, o peixe-águia não conseguia sozinho mantê-la. Ele precisava de ajuda. Chamou pelas criaturas das profundidades. «Temos que encontrar alguma coisa sólida onde esta mulher possa descansar», disse ansiosamente. Só que não existia nenhum pedaço sólido, apenas as águas tormentosas e sem fim.
Um mergulhão desceu na água, para baixo, até ao fundo do mar e trouxe de lá um pouco de lama no seu bico. Encontrou uma tartaruga, espalhou a lama no seu casco e mergulhou outra vez para trazer mais lama.
Então os patos juntaram-se-lhe. Eles gostavam de se sujar com lama e portanto ajudaram a trazer mais alguma nos seus bicos, espalhando-a por cima da tartaruga. Os castores também ajudaram – eles eram grandes construtores – e trabalharam muito, tornando a carapaça da tartaruga cada vez maior.
Agora toda a gente estava muito ocupada e entusiasmada. Este mundo que eles estavam a construir começava a ficar enorme! Os pássaros e os animais apressavam-se, construindo países, continentes, até que por fim tinham construído toda a terra. Durante todo esse tempo, a mulher do céu esteve sempre calmamente sentada nas costas da tartaruga.
Ela ainda aguenta a terra até hoje.

Trad.: Vasco David

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“As Mulheres dos Astros”

15.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Canadá – Povo Snuqualmi

Quando a terra era ainda jovem e com poucas plantas, não existia nem sol nem lua: reinava um claro-escuro eterno, e os homens e animais falavam a mesma língua. Duas mulheres, ocupadas a extrair do solo raízes comestíveis, discutiram certa vez para decidir se era melhor casar com pescadores ou com caçadores, e se as raízes que colhiam ficariam mais apetitosas com carne ou com peixe. Finalmente, desejaram casar com estrelas. Assim fizeram; mudaram-se para o céu com os seus novos maridos; estes traziam-lhes muita caça.
O mundo celeste assemelhava-se à terra, excepto no facto de o vento, a tempestade e a chuva serem aí desconhecidos. Os homens-estrelas permitiram às suas esposas continuar a extrair raízes com a condição de elas não cavarem muito fundo. A mais velha deu à luz um filho a que chamou Lua. Como as duas mulheres se aborreciam, decidiram violar a interdição e fizeram um buraco no manto celeste: o vento entrou no mundo celeste pelo orifício, e elas viram a sua terra natal em baixo.
As mulheres confeccionaram uma longa escada de corda e fugiram. Quando chegaram à aldeia, os aldeãos saudaram-nas, e todos
quiseram ir ver a escada celeste. Por brincadeira, fizeram um baloiço monumental que oscilava de uma montanha a outra, do norte ao sul, e do sul ao norte. Arrastando-se pelo chão, a extremidade da escada cavou as ravinas que existem hoje.
No meio da festa, a mulher que tinha tido o filho confiou-o à guarda de um sapo fêmea velha e cega. Mas as mulheres-salmão raptaram-no. Quando os aldeãos se aperceberam do rapto, deixaram imediatamente a brincadeira do baloiço para procurarem a criança. O rato ficou sozinho junto ao baloiço; roeu a corda e o baloiço caiu, formando um grande rochedo, que ainda hoje existe no vale do rio Snuqualmi.
Depois de diversas tentativas, o gaio-azul conseguiu voar sobre uma enorme muralha, cortada horizontalmente em dois, e cujas metades quase batiam uma na outra; esta muralha impedia o acesso à terra dos mortos, onde vivia a criança Lua, que entretanto tinha crescido. Lua prometeu regressar para junto dos seus; tornou-se célebre devido aos prodígios que realizava, tais como a criação de rios e de montanhas, a diferenciação dos animais, a invenção do fogo, a destruição dos monstros… Por fim, tornou-se na lua.

Trad.: Manuel João Ramos

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A Visita ao Céu

14.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Canadá – Povo Klallan

Nos primeiros tempos, não havia na terra senão uma única mulher, que vivia completamente só. Fez um marido a partir de um bloco de resina; mas, como nessa altura o sol era muito mais quente que actualmente, o homem acabou por fundir-se.
Por isso, os seus filhos odiavam o sol; um deles atirou uma flecha que se cravou no céu, e depois atirou um grande número de flechas que se encravavam umas nas outras, e com as quais construiu uma grande escada, que ele e os seus irmãos subiram até chegarem ao mundo celeste, o qual tinha o aspecto de uma grande pradaria.
Alguns gansos, que nessa altura ainda falavam, indicaram-lhes o caminho da morada do sol. Encontraram depois duas mulheres cegas. Um dos jovens roubou-lhes comida quando uma delas a estendia à outra. Perguntaram-lhes pela morada do sol; elas indicaram-lhes o caminho a seguir e deram-lhes um pequeno cesto contendo seis bagas silvestres.
Os irmãos chegaram à morada do sol, que era um velho que amontoava madeira resinosa num enorme braseiro – tão ardente que os jovens julgaram morrer, e de onde emanava o calor intenso que reinava então na terra.
Deram ao sol as seis bagas, que as comeu; estas multiplicaram-se no seu corpo de tal modo que o velho morreu. A violência do fogo começou a diminuir e, desde então, já não há tanto calor na terra.

Trad.: Manuel João Ramos

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Almada Negreiros – “Manifesto anti-Dantas e por extenso”

13.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este texto virulento do jovem Almada (que contava 23 anos) terá sido escrito entre Abril e Setembro de 1916, sendo, portanto, anterior à conferência de 1917, início oficial do movimento futurista em Portugal.
Saiu este folheto de 8 páginas impresso em papel de embrulho, ao preço de 100 reis, todo grafado em maiúsculas e utilizando aqui e além, para sublinhar a onomatopeia – PIM!-, uns ícones representando uma mão no gesto de apontar. Segundo se diz, terá esgotado nos primeiros dias, por obra do açambarcamento do próprio visado. Apesar disso, ou graças a isso, o escândalo rapidamente se propalou e a polémica causada teve uma grande intensidade. É que, no fundo, não é só a pessoa de Dantas que é atacada, mas toda uma geração de literatos, actores, escritores, jornalistas, etc, que ele personificava: “Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi”. Através da ironia e do sarcasmo, utilizando uma linguagem iconoclasta e insultuosa, abusando de exclamações, repetições e enumerações, Almada zurze o academismo instalado e os valores tradicionais que pretendia abalar.
Em suma, trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao Futurismo e a si próprio. A declamação é Almada.

Manifesto anti-Dantas e por extenso por José de Alamada-Negreiros, Poeta d’Orpheu, futurista e tudo!
Todos os meus livros devem ser lido pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar.
Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir a baixo de zero.
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d’Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair… Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que não é inteligente, nem decente, nem zero!
Vocês não sabem quem é a soror Mariana do Dantas? Eu vou-lhes contar:
A princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!
A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado. Pouco depois o bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.
A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras, dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o Chamilly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda hoje os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do Convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.
A Mariana que é histérica começa a chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.
Vêm descendo pla dita estreitíssima escada, várias Marianas, todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e ainda toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa.
E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela voz tão fresca e maviosa da Tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda… Quem está aí?… E de candeias apagadas?
– Foi o vento, dizem as pobres inocentes varadas de terror… E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é um dó d’alma o ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão e sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.
Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pela falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma uma pedaço d’interesse porque o bispo ora parece um polícia da investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d’investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o povo já está farto de saber – que a Mariana dormiu com o Noel. O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do bispo no que se mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano também cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.
A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana-aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuais.
Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do “Século” a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta “Júlio Dantas” e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas… E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.
Mas julgais que nisto se resume a literatura portuguesa? Não Mil vezes não!
Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos Castelhanos pra ser a derrota do Chianca.
E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avózinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimos excelentíssimo senhor Mello Barreto! Embaixador de Portugal em Madrid. E o frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecelidades de Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, o Dantas do desenho! E os jornalistas do Século e da Capital e do Notícias e do Paiz e do Dia e da Nação e da República e da Lucta e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes e todos os artistas de Portugal que eu não gosto. E os da Águia do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueiredo Amante do Museu e ah oh os Sousa Pintos hu hi e os burros de Cacilhas e os menos do Alfredo Guisado! E o raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da Lucta a quem Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Arte(s)! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeida, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mântua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!
E as convicções urgentes do homem Cristo Pai e as convicções catitas do homem Cristo Filho!…
E os concertos do Blanch! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!
José de Almada-Negreiros
Poeta d’Orpheu
Futurista e tudo!

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Daniel D. Dias – “Glória ao mundo digital”

10.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Estou aqui,
sentado,
nesta cave obscura,
no centro do mundo
Lá fora
há cheias, nevões, secas, corrupções, golpes de estado, burlas, revoluções
mas nada se agita no meu corpo,
nada perturba a minha mente
Existirá mesmo alguma coisa lá fora?
Estou aqui sentado em pleno mundo digital
e posso decidir
o que existe
o que é verdadeiro
o que é importante
Agora
neste fascinante mundo
fratalizado, bip-mapizado, pixelizado
posso apagar ou guardar
num qualquer limbo impoluto e reservado,
sem risco de castigo ou penitencia
tudo o que quero…
Até o inferno, agora, está ao alcance dum clique
Ah como é fácil comunicar
reunir todos os amigos numa só página da internet
confraternizar com eles
sem ter de lhes abrir a porta
ou oferecer-lhes um copo de vinho
O que não é digital pode ignorar-se:
a realidade tornou-se matéria negra
que nem o scâner e os telescópios podem detetar
Salvé!
Bem hajas abençoada tecnologia!
Finalmente posso ser um deus verdadeiro
e abandonar a realidade analógica do meu corpo
ao cuidado desses senhores de bata branca
que na ponta dos seus dedos fininhos
reduzem tudo a nomes estranhos
(Sei que eles tudo farão para que o meu traseiro sensível
não fique dormente de estar sentado.
Sei que se for necessário,
digitalizarão as minhas nádegas
para que se tornem virtuais e não me incomodem…)
Salvé!
Bem hajas, mundo digital!
Finalmente posso tratar a minha vida desfocada e triste
Num qualquer programa de Photoshop
E melhorá-la, dar-lhe brilho, acrescentar-lhe fantasia
O meu passado
revisto e melhorado
ficará depositado para memória futura
para que todos possam consultá-lo
e prestar-me a homenagem há muito devida
Salvé!
Posso finalmente correr mundo
Percorrer as rotas de migração das aves e das baleias
Viajar no espaço cósmico ou no tempo
e tudo isso sem asas nem motores
e posso entrar onde quiser,
sem nada pagar, sem correr riscos
nos templos da arte e da ciência,
nos teatros de guerra e fóruns mundiais
nos hospícios e lupanares,
nos lugares mais sagrados do bem e do mal…
Agora
posso ser benemérito sem limites,
e corajoso e intrépido como sempre sonhei
Posso proteger as espécies ameaçadas
combater a desertificação, o trabalho infantil
lutar contra ditaduras, a exploração capitalista e a violência doméstica
fazer companhia a doentes, velhos e sem abrigo…
Posso contribuir até para derrubar ditaduras…
E, tudo isto, sem sair daqui
Sentado,
nesta cave obscura
no centro do mundo!
(Só há uma coisa que me está interdito fazer
deixar de pagar a electricidade…)

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Daniel D. Dias – “Eu sou tu”

10.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu sou tu,
desconchavado mas sou
Talvez não te pareça, porque agora uso óculos de aro fino
Mas acredita, sou tu
Tenho estado aqui parado
À espera que eu próprio me reconheça
Mas os olhos e as pernas que se atravessam no caminho
Não me dão um minuto de concentração
Sei que sou tu
Não porque alguém me dissesse
(Afinal sempre tive a genética do teu nariz, o pénis curvado
A maçã de adão dorida da angústia)
Mas porque não é matematicamente possível ser eu
Porque não tenho arcaboiço para ser eu próprio
Esta porra de viver a teogonia dos outros
E cavalgar projetos herdados há tantas gerações
Não é própria para quem está aqui de passagem
O sideral espaço da minha mente está vazio
E as minhas mãos estão crispadas
de tanto agarrar essa solidão grotesca
que o relojoeiro louco a quem chamam deus
espalhou por aí

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Daniel D. Dias – “Marinheiro”

10.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Percorro a vida como um barco sem rumo
Oiço o vento, as gaivotas e o marulhar das ondas e gosto da música que compõem
E nunca tenho medo porque sinto o olhar do pai por perto, mesmo não estando lá
Acosto em qualquer porto ignoto sem receio
porque ganho coragem no regaço doce da minha mãe água
Estou só, mas a solidão não me aflige
porque um canto de sereias amigas me acompanha
E nem me importo de ficar triste porque gosto da minha tristeza que não é triste
Sei que a minha viagem não terminará e não me aflige que seja eterna
O que receio é nada ter que fazer ou parar de pensar,
Ou que os golfinhos e os peixes voadores me abandonem

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Daniel Dias – “Os melhores poemas”

10.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os melhores poemas?
Não cheguei a escrever
Podia tê-lo feito, mas não fiz
Alguns perdi
Outros não cheguei a encontrar
Que importância tem isso?
Para que servem afinal os poemas
mesmo quando são os melhores poemas?
Vale a pena perder tempo com coisas óbvias?
memorizar pensamentos que ganham asas?
Decorar o canto das aves esquivas?
coleccionar as cores da natureza?
Porque se insiste em acender velas
tendo à mão a abundante luz do sol?

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Cardenal Martinez – “Salmo do homem…”

03.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Salmo do homem que vê a realidade e não se cala.

Ouve, Senhor, estes versos que te rezo

Ao contemplar a realidade em que vivo.

Maldito seja o sistema que não deixa sonhar os poetas

Nem permite dizer a verdade a quem pensa.

Serão seus dias de luto e de lamento,

Porque matou no Homem o mais digno.



Maldito o sistema que não pratica a justiça

E persegue e tortura e encarcera a quem anuncia.

Terá que justificar sua conduta ante a história

E não encontrará nenhuma palavra de defesa.



Maldito seja o sistema que só procura a aparência de grandeza

Quando estão morrendo de fome os homens nas suas fronteiras;

Do mesmo modo que progrediu cairá,

Porque construiu seus alicerces

Sobre corpos vivos e sangues inocentes.



Maldito o sistema que tenta matar no homem a dimensão de transcendência

E coloca no seu lugar o “deus dinheiro” , o “deus sexo”, e “deus progresso”,

Destruir-se-á por dentro irremissivelmente,

Porque o coração do homem foi bem feito

E ninguém pode matar em nós

Esta sede de infinito que nos queima.



Feliz será, porém,

O homem que bebe água na fonte da praça junto ao povo,

Não terá motivos para se envergonhar de nada,

Nem terá que baixar os olhos 

Ante qualquer homem honesto.



Feliz o homem que à força de interiorizar 

Se fez livre por dentro

E não se importa já com a denúncia dos fortes,

Serão seus dias como o trigo da terra.

Cheios de sol e esperança partilhada

E o seguirão os povos da terra.



Feliz o homem que não assiste a reuniões importantes

Nem acredita nos discursos do governo;

Feliz o homem que assim pensa,

Porque terá sempre tranquila a sua consciência.

Mesmo que sofra a incompreensão e até o desprezo.

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Cristina Guedes – “Não há dia nenhum”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quantos segundos contados pelo marcar do pulso
ora apressados, ora descontentes
no vagar que todas as memórias têm e na dor
que muitas arrastam
 
 
Não há dia nenhum que detenha a memória viva
nem leis nem regras
que afinem e encaixem sentimentos
no politicamente correcto
 
Não há dia nenhum em que o teu rosto não surja do nada
pra me sacrificar ou as tuas palavras mordazes pra me sangrar
 
Não há e nem vai haver forma de conter o rio
de dor que ficou quando decidiste esconder e mentir
omitir ou devassar sentidos e vidas
 
Sabes, não sabes?
Que dia nenhum passará
sem que estejas presente neste rio!
Não haverá dia nenhum e nem isso podes impedir.

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Cristina Guedes – “Aqui jaz: saudade”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Antigamente era fácil 
falar de rotinas ou de cansaços, 
de olheiras e de corpos partidos, 
porque nada disso me deixava mal. 
Na segurança do amor ou no escaldar 
da paixão não cabem queixas ou indagações. 

É um quebrar de corpos sem dor, 
um esgotar de horas nocturnas 
onde a rotina do teu suor na minha pele 
causava dependência do prazer, 
mamilos espetados furando a palma das tuas mãos, 
ancas viciadas no samba dos teus quadris, 
num ir e vir, beijos que caíam, 
desabavam por pescoços e bocas por coxas e olhos. 

Equiparava as tuas palavras sussurradas e 
sedutoras aos murmurios de fundo das conchas do mar, 
á brisa redentora do final da tarde na colina, 
antigamente eras o mel que me adoçava os dias.
 
É por isto que escrevo, com receio 
de que as minhas memórias se percam 
no fundo do mar que já não somos, 
numa demência de rituais e febres, 
num transladar de novas direcções e objectivos. 
Sou eu a praguejar, ainda viva, ainda presente 
nos meus deslumbramentos acerca de ti. 
Ainda presa a momentos de luxo 
nesse tal planeta de afectos onde o teu nome 
em neon ilumina corredores e salões, 
esquinas e ruas convexas. 
Se te doer o presente, grava-me editada em mp3, 
pra que possas continuar a viver do passado que já fomos, tu e eu. 
Mas nesse dia jorra-me pétalas em cima 
e beija o rosto já manchado de humidade, 
logo abaixo onde diz : Aqui jaz Saudade.

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Cristina Guedes – “Coroação”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nas tuas mãos, o corpo nu, embriagado
bebe sequioso a poção que para mim
houveras preparado, 
e a valsa dos teus dedos continua,
na minha alma ganhando trono
depois de me beberes inteira,
branca e nua…
 
Qual semen desmaiado, ensaias novo tango,
passo doble e o meu sexo corresponde
ritmado, ás danças tântricas fazendo lei.
 
E a manhã nasce com a tua coroação,
clitóris e glande cansados,
poros e moléculas gritando:
– já és meu senhor, meu rei!

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Cristina Guedes – “No Carnaval dos teus braços”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

abrir a boca ao beijo
abrir as pernas ao segredo
que me vais contar com a mão
abrir o sexo á palavra quente
abrir-me em copas, ardente
deitar as pálpebras no cobertor
da tua pele e beber mel

vou sentir-te distante
dentro de mim
abrir-te o desejo guardado
e provar de ti a noite,
o nosso ardor de tempo cozinhado
vou bordar um sem-nexo,
mastigar o poema revelado,
esgrimir esse teu sexo
Virás pedir-me pela manhã
o café e a nicotina
sussurrar o amor em surdina
espreguiçar-me ei no teu abraço e
sem grande estardalhaço
enroscar-me novamente

fazer do breve eternamente
e oferecer-me ao diálogo carnal
das nossas mãos urgentes
deslumbrar-me ás
com os mistérios do Sabugal e,
no teu sexo, eu, mascaro-me de gueixa
e serves-me uma e outra vez (até esgotar),
o Carnaval…

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Cristina Guedes – “A conjugação limitada”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Amas e dizes exijo e mostras intolerância.
Amar assim sai caro
Com juros, impostos e lucros,
que só o fazes até ao sinal vermelho
que depois deles já só odeias
e dizê-lo é feio. E desfeias o acto
Amar, verbo transitivo conjugado
no avesso em que te esqueço ou te possuo.
Eu que te não sei possuir mais do que amar é
não ser incondicional mas voluntário.
Já é bom sem magoar
este verbo, afinal
conjugado no singular.
Eu amo-te com reticências.

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Pedro Barão de Campos – “O Sonho”

28.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Às vezes, tenho um sonho 

Que de noite surge na minha 

almofada Como se fosse 

trazido por uma brisa doce Ou 

um beijo quente que me aconchega.

Ali acontece

Que de um instante ao outro, tudo

muda e fico sonho

Entre a realidade de estar a dormir e a 

ilusão do sonho que
me
invade e me transforma

E há uma linha ténue onde tudo se

mistura e cresce…

E eu sou turista breve entre um e outro

Mundo

No transcendente instante que se 

demora em mim.

De repente, sou todo sonho!

E o que era a cama é agora uma fresca

erva verde que me

cerca até ao arvoredo

E eu estou estendido nesse prado de

Encanto

Onde os sonhos são a forma das 

gaivotas e as copas das

árvores a dançar ao som de uma

melodia inconcebível…

Debaixo de um céu azul profundo

Sinto o vento a passar por mim e pelas

minhas mãos

quando as ergo em direcção ao Sol

Escuto a voz de um som que sopra por

entre a folhagem e

produz música…

Como um piano em que as teclas são 

as folhas e o pianista

é o pensamento

E vejo… a exaltação plena de uma 

tranquilidade nova

Vejo a natureza… e sou feliz.

De um lado há vacas a pastar

E as suas manchas que são pingos de 

tinta, deixados cair

por algum artista que conheci

Levam-me a subir a encosta até ao

topo do monte.

Pelo caminho, conheço aves de cores

Vivas

E revejo pedras que me falam ao 

passar.

Uma cabra da montanha fita-me
ao 
Longe

E um texugo do bosque ri-se da minha 

dificuldade em

caminhar.

Chego, finalmente, até um cipreste

E cumprimento-o ao chegar.

Do interior da casca, sinto um espírito

Pulsante

Que me responde sem falar.

Olho de relance…

Talvez tenha cem anos ou mais.

Falou-me do tempo e das coisas que 

Vira

Disse-me que ali, há mil anos atrás, 

havia um vulcão

Uma boca cheia de vento, fogo e 

Erupção

Onde a Terra se abria

Para extravasar a sua solidão.

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Pedro Barão de Campos – “Prisioneiro”

28.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Vem, vem comigo

0 peito é quente

A madrugada é fria

E a saudade que tenho de um sonho

É toda a vida que me resta.

Sou apenas as mãos pintadas Sim, 

assim, estas mãos pintadas

Numa cor que tu não vês

Sou apenas o horizonte longe

Essa estonteante montanha 

De ilusões em neve fina Onde 

nunca irás

Sou esse firmamento de estrelas apagadas E

na verdade, a minha perdição é a liberdade

Que por querer ser livre 

Refém me torno em 

cada instante…!

Sou um prisioneiro faminto 

Num país feito de saudade.

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Pedro Barão de Campos – “Sou um pássaro”

28.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sabes,

Sou um pássaro.


Só hoje descobri

Por entre as arcadas do monumento alado em tua honra

Quando esticava os braços que eram asas à sombra

Olhei de relance para um espelho fixo

No outro lado da rua
E vi um corpo de pássaro…

Uma memória de pássaro…

Um levitar… de pássaro

Que não se escondia… nem calava.

Vi uma alma de pássaro…

Que não fugia nem se camuflava

No denso arvoredo que ainda haveria de existir

Junto ao lago sagrado do artista genuíno
Que compõe melodias feitas de si próprio
E se transforma… em breves instantes
Em instantes de si mesmo…

Nos pedaços da obra que inventa

Da escultura que molda

Do poema que escreve…

E ele a sua métrica… a sua regra…a sua forma… o seu

Sentido…

De sonhador…

De apaixonado…

De amante…
E crepita… luz! Crepita!

Cintila firmamento suave! Eu espero por ti… pela tua voz!

Espero… pelo teu sabor sumptuoso… febril… Quente…

Pelo teu silvo ardente…

Essa melodia divinamente harmoniosa

Que estipula… todos os limites do céu…

Aqui…

Ali…

No infinito…


Por dentro do vácuo ermo e sorridente

Desse lampejo de liberdade que é voar…

Assim…

Com as asas… Abanando…

Assim.…

Porque, sabes?

Sabes… meu bom amigo.. 

Hoje descobri…

Sou um pássaro!

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Daniel de Sá – “A minha amada”

22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os seios da minha amada são como duas romãs maduras;
O seu cabelo tem perfume de alfazema;
Os seus lábios são da cor do açafrão
E a sua boca tem o sabor do damasco;
Os seus olhos são como pedras preciosas
E a sua pele como o oiro da mesquita de Abd-Al-Rahman.

A visão da minha amada é a minha alegria;
As formas do seu corpo, a minha delícia;
O seu amor, a minha felicidade.

Nada é comparável à minha amada.

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Daniel de Sá – “Isabel e Fernando”

22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dois leões lutaram pela mesma corça,
E vieram dois leopardos e roubaram-na.
Por isso já Isabel pode lavar a camisa na água de Albaicín
E o rei pode beber das lágrimas de Aynadamar.

Vede, ó príncipes, com que cuidado foi posta cada pedra,
Em Granada, a esplêndida, e plantada cada rosa.
Uma mãe não veste a filha com mais carinho.
Contemplai os versos dos poetas
Que ornamentam as paredes da Alhambra,
E as palavras do Alcorão que as tornam veneráveis.
Granada curvou a cerviz perante a força das vossas armas.
Mas respeitai os vencidos e a memória dos que pereceram.
Perante as pedras e as rosas de Granada,
Dizei ao menos: “Como eles a amaram!”

A luta dos dois leões refere-se à guerra entre El Zagal e Boabdil, seu sobrinho, que roubara o trono ao pai, Mulhacén (Muley Assam), que morrera em 1585 e contra o qual também lutara. Os dois leopardos são Isabel de Castela e Fernando de Aragão.
Aynadamar é um topónimo composto por “Ayn” (“olho”, com o significado de nascente), e “damar” (lágrimas), talvez como referência à maneira como surge a água nessas fontes que abastecem a zona alta de Granada, Albaicín, coração da cidade velha.

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Daniel de Sá – “Granada em mãos infiéis”

22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A minha amada desnudou-se e cobriu-se de vergonha.
Só a vergonha veste agora a minha amada.
A minha amada dormiu com o infiel,
Entregou-se nos seus braços e deitou-se na sua cama.
Esqueceu as juras de amor que eu lhe fizera
E deixou-se seduzir por falas mansas.

Como eu entendo que ele a tenha amado,
A ela, a mais amável de todas!

Oh, se eu pudesse tê-lo cegado antes que ele a contemplasse!
Mas não tocarei sequer um só dos seus cabelos,
Para não tornar mais infeliz ainda a minha amada.

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Daniel de Sá – “Boabdil…”

22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Ó rei cristão, por que roubaste os meus cordeirinhos,
Nascidos para serem livres nos prados de Granada?
Eles foram amamentados pelos seios de sua mãe
E comeram à minha mesa.

Ainda tenho nas faces o calor dos seus beijos,
Sinto nos braços o doce peso dos seus corpos,
Nas mãos, a ternura das suas carícias,
E nos lábios o sabor das suas faces.

Por quantos palácios pode trocar-se um filho?
Quantas muralhas vale aquele que gerámos?

Se eu tivesse o mundo, trocá-lo-ia pelos meus filhos.
Mas eu não posso dar aquela que outros construíram
E pela qual muitos morreram.
Em Granada há outros pais que amam
Como eu amo o dócil Yusuf e o meigo Ahmed.
E nenhum teria Granada para trocar pelos filhos.

Antes tomasses o meu escudo como troféu de guerra
E o meu cavalo como despojo de batalha,
Porque isso seria sinal de eu estar morto.

Ó rei cristão, ó príncipe de Castela,
A minha dor é imensa.
Se não me atiro sobre a ponta de um alfange,
É para que não haja mais um morto por quem chorar
Nem menos um vivo para chorar os mortos.

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Daniel de Sá – “Morayma…”

22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Da mais alta torre de Granada
Vejo partir o meu amado para a batalha.
Choro, mas sem lágrimas,
Porque quero perceber até o último grão da poeira
Levantada pelos cascos do seu cavalo,
Forte como a morte
E belo como a vida.

Eu temo a coragem do meu amado.
Ele despreza a vida
Porque sabe que na sua morte
Eu o amarei mais ainda.
Mas amar mais do que eu amo já é só dor,
Já só é tristeza.

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Palavras 162 – Daniel de Sá

22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Daniel de Sá, de nome completo, Daniel Augusto Raposo de Sá nasceu na Maia, S. Miguel, Açores, em Março de 1944. Autor com vasta obra, constituída por romances, crónicas, novelas, ensaios e contos.

Daniel de Sá foi professor do ensino primário. Estudou Filosofia e Teologia em Valência e Granada, exerceu vários cargos públicos, escreve em vários jornais e já publicou mais de uma dezena de livros.
Foi agraciado pelo Presidente da República num 10 de junho, Dia de Portugal, Camões e das Comunidades, com o Grau de Oficial da Ordem Infante D. Henrique pela relevância de sua obra e por sua contribuição na expansão da cultura portuguesa.

Como acontece muitas vezes li, por acaso, um poema de Daniel de Sá. Ouviu-o, também certamente por acaso e teve a amabilidade de me enviar uma mensagem agradecendo a minha leitura e onde se pode ler: 
“Não me considero poeta, mas faço, às vezes, umas coisas por graça. Ofereci há meses a minha mulher um livrinho não comerciável. Mas penso publicá-lo em breve em edição bilingue, Português/Castelhano. Se ler alguma coisa do anexo, perceberá porquê. E, se algum dos poemas lhe interessar, terei muito gosto se o usar no Raposa.”

Pois, interessou sim, senhor e vamos ter neste “Palavras de Ouro” a poesia de Daniel de Sá. Começamos por ouvir as palavras que o poeta dedicou a Maria Alice, sua mulher, na introdução do tal “livrinho não comerciável” intitulado “As rosas de Granada” e onde ficamos a sentir e perceber a atmosfera onde se desenrolam os poemas.

“Nunca escrevi um poema para ti, Maria Alice. Porque sempre te julguei superior a toda a poesia. Pelo menos a minha. Mas, por um desses acasos que são mais criadores do que qualquer momento de inspiração, inventei um poeta árabe de Granada – Ahmed Ben Kassin. E fui-lhe dando vida pela voz que lhe dava.
A maior parte dos poemas de Ahmed Ben Kassin são dedicados à sua amada. Para os compor, imaginei que ele a amasse tanto como eu a ti. E assim, numa espécie de metempsicose consciente, ele foi eu ou eu fui ele em cada poema. Até um pouco também nos que dedicou a Granada, cidade que me fascina. Ou a Boabdil, o trágico e último rei dela. Ambos terão partido no mesmo dia para o exílio nas Alpujarras, a sul da Serra Nevada, e mais tarde para Marrocos. Ahmed Ben Kassin assistiu ao choro de Boabdil, ao voltar-se num último adeus à cidade que tanto amava. E também ao pranto do rei deposto quando, pouco tempo depois, perdeu Morayma, a outra imensa paixão da sua vida.
Não me perguntes nada mais acerca de Ahmed Ben Kassin e da sua amada. Da minha sei que vive comigo há trinta e sete anos. Dia a dia, que hoje, quando isto escrevo, se completam.
Por isso este livro te pertence. Não te é dedicado simplesmente, como os outros, mas é teu, teu fisicamente e não apenas em intenção. Todos os exemplares te são oferecidos.
Seguem-se, então, os meus poemas de Ahmed Ben Kassin. Ou teus, aliás.
Maia, na nossa casa, em 31 de Março de 2011
Daniel”

Morayma vendo partir Boabdil

Da mais alta torre de Granada
Vejo partir o meu amado para a batalha.
Choro, mas sem lágrimas,
Porque quero perceber até o último grão da poeira
Levantada pelos cascos do seu cavalo,
Forte como a morte
E belo como a vida.

Eu temo a coragem do meu amado.
Ele despreza a vida
Porque sabe que na sua morte
Eu o amarei mais ainda.
Mas amar mais do que eu amo já é só dor,
Já só é tristeza.

Boabdil chorando os filhos prisioneiros

Ó rei cristão, por que roubaste os meus cordeirinhos,
Nascidos para serem livres nos prados de Granada?
Eles foram amamentados pelos seios de sua mãe
E comeram à minha mesa.

Ainda tenho nas faces o calor dos seus beijos,
Sinto nos braços o doce peso dos seus corpos,
Nas mãos, a ternura das suas carícias,
E nos lábios o sabor das suas faces.

Por quantos palácios pode trocar-se um filho?
Quantas muralhas vale aquele que gerámos?

Se eu tivesse o mundo, trocá-lo-ia pelos meus filhos.
Mas eu não posso dar aquela que outros construíram
E pela qual muitos morreram.
Em Granada há outros pais que amam
Como eu amo o dócil Yusuf e o meigo Ahmed.
E nenhum teria Granada para trocar pelos filhos.

Antes tomasses o meu escudo como troféu de guerra
E o meu cavalo como despojo de batalha,
Porque isso seria sinal de eu estar morto.

Ó rei cristão, ó príncipe de Castela,
A minha dor é imensa.
Se não me atiro sobre a ponta de um alfange,
É para que não haja mais um morto por quem chorar
Nem menos um vivo para chorar os mortos.

Granada em mãos infiéis

A minha amada desnudou-se e cobriu-se de vergonha.
Só a vergonha veste agora a minha amada.
A minha amada dormiu com o infiel,
Entregou-se nos seus braços e deitou-se na sua cama.
Esqueceu as juras de amor que eu lhe fizera
E deixou-se seduzir por falas mansas.

Como eu entendo que ele a tenha amado,
A ela, a mais amável de todas!

Oh, se eu pudesse tê-lo cegado antes que ele a contemplasse!
Mas não tocarei sequer um só dos seus cabelos,
Para não tornar mais infeliz ainda a minha amada.

Isabel e Fernando

Dois leões lutaram pela mesma corça,
E vieram dois leopardos e roubaram-na.
Por isso já Isabel pode lavar a camisa na água de Albaicín
E o rei pode beber das lágrimas de Aynadamar.

Vede, ó príncipes, com que cuidado foi posta cada pedra,
Em Granada, a esplêndida, e plantada cada rosa.
Uma mãe não veste a filha com mais carinho.
Contemplai os versos dos poetas
Que ornamentam as paredes da Alhambra,
E as palavras do Alcorão que as tornam veneráveis.
Granada curvou a cerviz perante a força das vossas armas.
Mas respeitai os vencidos e a memória dos que pereceram.
Perante as pedras e as rosas de Granada,
Dizei ao menos: “Como eles a amaram!”

Notas:
A luta dos dois leões refere-se à guerra entre El Zagal e Boabdil, seu sobrinho, que roubara o trono ao pai, Mulhacén (Muley Assam), que morrera em 1585 e contra o qual também lutara. Os dois leopardos são Isabel de Castela e Fernando de Aragão.
Aynadamar é um topónimo composto por “Ayn” (“olho”, com o significado de nascente), e “damar” (lágrimas), talvez como referência à maneira como surge a água nessas fontes que abastecem a zona alta de Granada, Albaicín, coração da cidade velha.

A minha amada

Os seios da minha amada são como duas romãs maduras;
O seu cabelo tem perfume de alfazema;
Os seus lábios são da cor do açafrão
E a sua boca tem o sabor do damasco;
Os seus olhos são como pedras preciosas
E a sua pele como o oiro da mesquita de Abd-Al-Rahman.

A visão da minha amada é a minha alegria;
As formas do seu corpo, a minha delícia;
O seu amor, a minha felicidade.

Nada é comparável à minha amada.

Ouvimos, neste “Palavras de Ouro” o nº 162, poemas de Daniel de Sá e que fazem parte de um livro de poemas intitulado “As Rosas de Granada”.

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Cláudia Marczak – “O sexo é sagrado” (2ª versão)

19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O sexo é sagrado, 

como salgadas são as gotas de suor 

que brotam dos meus poros 

e encharcam nossas peles. 

A noite é meu templo 

onde me torno uma deusa enlouquecida 

sentindo teus pelos sobre a minha pele. 

Neste instante já não sou nada, 

somente corpo, 

boca, 

pele, 

pêlos, 

línguas,

bocas. 

E a vida brota da semente, 

dos poucos segundos de êxtase. 

Tuas mãos como um brinquedo

passeiam pelo meu corpo. 

Não revelam segredos

desvendam apenas o pudor do mundo, 

descobrem a febre dos animais.

Então nos tornamos um

ao mesmo tempo em que 

a escuridão explode em festa.

A noite amanhece sem versos, 

com a música do seu hálito ofegante.

O sol brota de dentro de mim. 

Breves segundos. 

Por alguns instantes dispo-me do sofrimento. 

Eu fui feliz.

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Cláudia Marczak – “Não sou…”

19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não sou prisioneira do tempo
Nem ancoro meus sonhos
No solo árido da minha vida medíocre.
Deixo meus olhos flutuarem
Entre céus e infernos
Que a poesia me leva.
Procuro a jóia rara
De um sorriso único
Repleto de angústia e surpresa.
Navego obscura entre
meus medos e meus desejos
sem ter certeza de nada.
Que venha a vida, então,
E penetre em mim
Como um punhal
Rasgando minhas dúvidas
Cortando as amarras
Que me prendem ao possível.
Pertenço a quem me possuir,
Sou do mundo.
Sou minha vida.
Sou o espelho do que jamais serei.

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Cláudia Marczak – “Coração de Vidro”

19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Moram em mim
outros olhos que me vêem.
Neles existo e não me enxergo.
Tenho os olhos de um animal,
arisco e selvagem.
Farejo minhas vontades,
sacio minha sede
nos rios que correm em outros corpos.
Todos únicos sem serem um;
verdadeiros sem serem reais.
Tenho os olhos do pecado que não existe,
e escorrem por eles
lágrimas do sangue da minha culpa.
Tenho os olhos de versos.
Olhos de alma
que mostram meu coração de vidro,
tão pequeno e frágil,
que brilha e lacera em meu peito
inúmeras feridas
da onde brotam palavras vazias,
palavras vãs,
que eu nunca conseguirei entender.

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Cláudia Marczak – “Sei o gosto…”

19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sei o gosto do seu beijo,
Seu cheiro me guia
Na escuridão da noite.
Onde está você agora
Que seu espírito engoliu meu coração ?
Por que não o encontro,
Amanhecendo ao meu lado,
Quando meu corpo chora seu abraço…
Não tente me entender,
Apenas me toque,
Deixa seu suor inundar
Minha pele com seu prazer
Beija-me
Possua-me
Que na minha solidão
Já não cabe o tamanho da sua ausência,
Pois quando vi seus olhos
Repletos de luz
O breu da minha tristeza
Iluminou-se de festa
E fez da minha estrada
Um rio de águas mornas
Desaguando no seu mar.
Deixe-me gritar seu nome
Deixe-me sangrar seu coração
Deixe-me lamber em seus lábios
Toda a dor que eles tem
E beber sua saliva de fel.
Não deixe meus olhos se fecharem,
Pois eles possuem os sonhos frágeis
De quem ama demais.

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