Nota biográfica

José Gomes Ferreira (Porto, 9 de Junho de 1900 - Lisboa, 8 de Fevereiro de 1985) foi um escritor e poeta português. Estudou nos liceus de Camões e de Gil Vicente onde teve o primeiro contacto com a poesia. Colaborou com Fernando Pessoa, ainda muito jovem. Está em todos os grandes momentos "democráticos e antifascistas" e colabora com outros poetas neo-realistas num álbum de canções revolucionárias compostas por Fernando Lopes Graça, com a sua canção "Não fiques para trás, ó companheiro".

“Dulcineia”, poema de José Gomes Ferreira.

16.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dulcineia, Dulcineia,
volte ao que era:
uma plebeia
sem primavera

Volte aos redis,
coberta de chagas
— sem espuma em gomis
nem brilho de adagas.

Volte ao que foi,
pois ainda conserva
um cheirinho a boi,
um cheirinho a erva…

Volte a apanhar pinhas
e bosta para os fornos.
E a tanger cabrinhas
com flores nos cornos.

Volte a andar de gatas
como os outros bichos…
E esqueça as serenatas
aos seus caprichos.

Esqueça o castelo
onde os donzéis
se batiam em duelo
à século XVI…

E volte à aldeia
da sua labuta.

Dulcineia, Dulcineia,
deixe de ser Ideia
e torne-se a carne e a alma
da nova luta.

(de A Morte de D. Quixote, in Poeta Militante / Viagem do Século Vinte em Mim – 1º volume, Moraes editores, 1977 – Círculo de Poesia)

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“Dei-te o meu corpo”, poema de Maria do Rosário Pedreira.

15.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dei-te o meu corpo como quem estende
um mapa antes da viagem, para que nele
descobrisses ilhas e paraísos e aí pousasses
os dedos devagar, como fazem as aves
quando encontram o verão. Se me tivesses

tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços
como uma escarpa pronta a desabar, ou
uma cidade do litoral a definhar nas ondas.

Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
nas minhas mãos – tristes geografias,
labirintos de razões improváveis, tão curtas
linhas que a minha vida não teve tempo
senão para pressentir-se. Por isso, guardo

dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
muros e regressos – nem sequer feridas
ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber porquê,
as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.

in Poesia Reunida, Quetzal

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“A forca”, poema de Cesário Verde.

14.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Já que adorar-me dizes que não podes, 

Imperatriz serena, alva e discreta,
Ai, como no teu colo há muita seta
E o teu peito é peito dum Herodes,

Eu antes que encaneçam meus bigodes 

Ao meu mister de ama-te hei-de pôr meta,

O coração mo diz – feroz profeta,
Que anões faz dos colossos lá de Rodes.


E a vida depurada no cadinho 

Das eróticas dores do alvoroço,

Acabará na forca, num azinho,


Mas o que há-de apertar o meu pescoço 

Em lugar de ser corda de bom linho 

Será do teu cabelo um menos grosso.


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“Reinvenção”, poema de Cecília Meireles.

11.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

A vida só é possível

reinventada.



Anda o sol pelas campinas

e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas…

Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas

de ilusionismo… — mais nada.



Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.



Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços.

Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.



Não te encontro, não te alcanço…

Só — no tempo equilibrada,

desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva.

Só — na treva,

fico: recebida e dada.



Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.

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“Desespero”, poema de José Carlos Ary dos Santos

10.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não eram meus os olhos que te olharam
Nem este corpo exausto que despi
Nem os lábios sedentos que poisaram
No mais secreto do que existe em ti


Não eram meus os dedos que tocaram
Tua falsa beleza, em que não vi
Mais que os vícios que um dia me geraram
E me perseguem desde que nasci.


Não fui eu que te quis. E não sou eu
Que hoje te aspiro e embalo e gemo e canto,
Possesso desta raiva que me deu


A grande solidão que de ti espero.
A voz com que te chamo é o desencanto
E o esperma que te dou, o desespero.

em ‘Liturgia do Sangue’

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“O que tu és…”, poema de Florbela Espanca.

09.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

És Aquela que tudo te entristece

Irrita e amargura, tudo humilha;

Aquela a quem a Mágoa chamou filha; 

A que aos homens e a Deus nada merece.

Aquela que o sol claro entenebrece

A que nem sabe a estrada que ora trilha.

Que nem um lindo amor de maravilha 

Sequer deslumbra, e ilumina e aquece!

Mar-Morto sem marés nem ondas largas,

A rastejar no chão como as mendigas, 

Todo feito de lágrimas amargas!

És ano que não teve Primavera…

Ah! Não seres como as outras raparigas

Ó Princesa Encantada da Quimera!…

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“No obscuro desejo”, poema de Vasco Graça Moura.

08.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

No obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção
que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,
e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar
a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.

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“Desfecho” de Miguel Torga.

07.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te…
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente…

E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia…
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

(Câmara Ardente)

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“Não quero mais que um som de água” de Fernando Pessoa.

04.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não quero mais que um som de água
Ao pé de um adormecer.
Trago sonho, trago mágoa.
Trago com que não querer.

Como nada amei nem fiz
Quero descansar de nada.
Amanhã serei feliz
Se para amanhã há estrada.

Por enquanto, na estalagem
De não ter cura de mim,
Gozarei só pela aragem
As flores do outro jardim.

Por enquanto, por enquanto,
Por enquanto não sei quê…
Pobre alma, choras sem pranto,
E ouves como quem vê.

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“O futuro”, poema de Ary dos Santos.

01.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.

In “O sangue das palavras” 1979

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“Fumo” de Florbela Espanca.

27.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Longe de ti são ermos os caminhos,

Longe de ti não há luar nem rosas;

Longe de ti há noites silenciosas,

Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos

Perdidos pelas noites invernosas… 

Abertos, sonham mãos cariciosas,

Tuas mãos doces plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram… choram…

Há crisântemos roxos que descoram…

Há murmúrios dolentes de segredos…

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços! 

E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,

Fumo leve que foge entre os meus dedos!…

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“Lágrimas tudo”, poema de António Gedeão.

26.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Só de pensar amor, como se o procurasse,
encheram-se-me os olhos de humidade.
Exactamente os mesmos olhos, a mesma fonte,
(se buscasse
fitá-los na outra face,
do ódio, da violência, da impiedade.

Porquê, lágrimas tudo?

Faz chorar o menino quando nasce,
e o homem quando morre.
E a desumana voz que grita: Faça! — e faz-se,
e a outra, a que nos fala, e em doce tom discorre.
E as equações diferenciais do espaço,
e os três metros quadrados de uma cela.
E a truculenta família do palhaço,
e a fétida ninhada da cadela.
E as aguarelas frescas da manhã,
e o lápis de carvão da sombra traiçoeira.
E os burgueses do Rodin,
e os robertos da feira,
e a Capela Sistina,
e os bonecos de barro de Barcelos,
e a menina de vidro, opalescente e fina,
e a velha bruxa de excrementos nos cabelos.

Tudo, lágrimas tudo.
Porquê, lágrimas tudo?

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“A largada”, poema de Miguel Torga.

25.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Foram então as ânsias e os pinhais
Transformados em frágeis caravelas
Que partiam guiadas por sinais
Duma agulha inquieta como elas…

Foram então abraços repetidos
À Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfunadas
Por um sopro viril de reacção
Às palavras cansadas
Que se ouviam no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
Cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.

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“Abdicação”, poema de Fernando Pessoa.

24.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços

E chama-me teu filho.
Eu sou um rei

Que voluntariamente abandonei

O meu trono de sonhos e cansaços.
Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei,

E meu ceptro e coroa – eu os deixei 

Na antecâmara, feitos em pedaços.

Minha cota de malha, tão inútil, 

Minhas esporas, de um tinir tão fútil, 

Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,

E regressei à noite antiga e calma

Como a paisagem ao morrer do dia.

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“Dói-me quem sou” de Fernando Pessoa.

21.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.

Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer ideia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.

Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
Que quis pedir esmola e não ousou.

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“Não tenho ambições nem desejos”, de Fernando Pessoa.

20.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não tenho ambições nem desejos.

ser poeta não é uma ambição minha.

É a minha maneira de estar sozinho. 



Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz

E corre um silêncio pela erva fora.



Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe porque ama, nem sabe o que é amar…



Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura…



A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

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“Fotografia”, poema de Adélia Prado.

19.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando minha mãe posou

para este que foi seu único retrato,

mal consentiu em ter as têmporas curvas.

Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto

que uma doutrina dura fez contido.

A boca é conspícua,

mas as orelhas se mostram.

O vestido é preto e fechado.

O temor de Deus circunda seu semblante,

como cadeia. Luminosa. Mas cadeia.

Seria um retrato triste

se não visse em seus olhos um jardim.

Não daqui. Mas jardim.



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“Um pouco mais”, poema de Casimiro de Brito.

22.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Esta manhã não lavei os olhos –
pensei em ti.

Se o teu ouvido se fechou à minha boca
poderei escrever ainda poemas de amor?
A arte de amar não me serve para nada.

Um fogo em luz transformado.
Subitamente, a sombra.

Há dias em que morro de amor.
Nos outros, de tão desamado,
morro um pouco mais.

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“Não canto porque sonho”, poema de Eugénio de Andrade.

21.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.


Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
o mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.


Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.

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“Hoje proíbo”, poema de José Gomes Ferreira.

20.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Hoje proíbo as rosas de nascerem diante de mim!
Proíbo as deusas de dançarem nos olhos das crianças
proíbo os corpos das mulheres de terem outro destino
que a morte!

Sim, proíbo!
E (baixinho, em sonho) aos gritos no mundo
ordeno aos homens
que venham para a rua descalços
para sentirem nos pés nus
o silêncio da terra
e o terror de viverem num planeta
onde os fuzilados não ressuscitam,
nem os malmequeres protestam com flores de luto
contra este sol que continua a fabricar primaveras mecânicas
e este cheiro tão bom a mulheres novas nas árvores com cio!


Em memória das vítimas do massacre do cemitério de Santa Cruz, em Timor.

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“Bagagens”, poema de Adélia Prado.

17.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Uma noite de lua pálida e gerânios

ele viria com boca e mãos incríveis

tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero

e só vejo dois caminhos:

ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobro

o que não for natural como sangue e veias

descubro que estou chorando todo dia,

os cabelos entristecidos,

a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que vem,

de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?

A lua, os gerânios e ele serão os mesmos

— só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?

Como a fecharei, se não for santa?

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“O camarim”, poema de Gonçalves Crespo.

16.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

A luz do sol afaga docemente
As bordadas cortinas de escumilha;
Penetrantes aromas de baunilha
Ondulam pelo tépido ambiente.

Sobre a estante do piano reluzente
Repousa a Norma, e ao lado uma quadrilha;
E do leito francês nas colchas brilha
De um cão de raça o olhar inteligente.

Ao pé das longas vestes, descuidadas
Dormem nos arabescos do tapete
Duas leves botinas delicadas.

Sobre a mesa emurchece um ramalhete,
E entre um leque e as luvas perfumadas
Cintila um caprichoso bracelete.


Publicado no livro Miniaturas (1871).

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“Não saibas, imagina”, poema de Miguel Torga.

15.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não saibas: imagina…
Deixa falar o mestre, e devaneia…
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.
Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões…
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições…
Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia…

“Instrução Primária”, Poema de Miguel Torga, in Diário IX

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“Está envenenada a terra”, poema de Eduardo Galeano.

14.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Está envenenada a terra que nos enterra ou desterra.

Já não há ar, só desar.

Já não há chuva, só chuva ácida.

Vista do crepúsculo no final do século



Já não há parques, só parkings.

Já não há sociedades, só sociedades anónimas.

Empresas em lugar de nações.

Consumidores em lugar de cidadãos.

Aglomerações em lugar de cidades.

Não há pessoas. Só públicos.

Não há visões. Só televisões.

Para elogiar uma flor, diz-se: “parece de plástico”.

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“Noites Gélidas”, poema de Cesário Verde.

13.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Rosto comprido, airosa, angelical, macia,

Por vezes, a alemã que eu sigo e que me agrada, 

Mais alva que o luar de Inverno que me esfria,

Nas ruas a que o gás dá noites de balada;

Sob os abafos bons que o Norte escolheria,

Com seu passinho curto e em suas lãs forrada,

Recorda-me a elegância, a graça, a galhardia

De uma ovelhinha branca, ingénua e delicada.

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“Sonho”, poema de Luís Castro Mendes.

11.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Numa casa de vidro te sonhei.

Numa casa de vidro me esperavas.

Num poço ou num cristal me debrucei.

Só no teu rosto a morte me alcançava
.

De quem a morte, por terror de mim?

De quem o infinito que faltava?

Numa casa de vidro vi meu fim.

Numa casa de vidro me esperavas.


Numa casa de vidro as persianas

desciam lentamente e em seu lugar

a noite abria o escuro das entranhas

e o teu rosto morria devagar.


Numa casa de vidro te sonhei.

Numa casa de vidro me esperavas.

Fiz do teu corpo sonho e não olhei

nas palavras a morte que guardavas.


Descemos devagar as persianas,

deixámos que o amor nos corroesse

o íntimo da casa e as estranhas

cerimónias do dia que adoece.


Numa casa de vidro. Num espelho.

Na memória, por vezes amargura,

por vezes riso falso de tão velho,

cantar da sombra sobre a selva escura.


Numa casa de vidro te sonhei.

No vazio dessa casa me esperavas.

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“Resposta”, poema de Luís Filipe Castro Mendes.

10.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sim, andei por fora,
por vezes não reconheço as ruas da minha cidade
e há rostos que me envelhecem o coração.
Mas não tenho dúvidas, não precisa de fazer perguntas,
de ficar atento aos meus mínimos movimentos,
de esboçar por dentro de si o desenho
daquilo a que chama a minha alma.
Os comboios param em estações abandonadas, noite dentro,
e nós saímos, passageiros estremunhados e engelhados pelo frio
para cidades desconhecidas, belas e desertas
como todo o tempo que passou.
Sim, eu sei que estava a fugir ao assunto.
Importa-se de repetir a sua pergunta?

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“Árvore em fogo” poema de Berthold Brecht.

09.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Na ténue névoa vermelha da noite

Víamos as chamas, rubras, oblíquas

Batendo em ondas contra o céu escuro.

No campo em morna quietude

Crepitando

Queimava uma árvore.

Para cima estendiam-se os ramos, de medo estarrecidos

Negros, rodeados de centelhas

De chuva vermelha.

Através da névoa rebentava o fogo.

Apavorantes dançavam as folhas secas

Selvagens, jubilantes, para cair como cinzas

Zombando, em volta do velho tronco.

Mas tranquila, iluminando forte a noite

Como um gigante cansado à beira da morte

Nobre, porém, em sua miséria

Erguia-se a árvore em fogo.

E subitamente estira os ramos negros, rijos

A chama púrpura a percorre inteira

Por um instante fica erguida contra o céu escuro

E então, rodeada de centelhas

Desaba.

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“Que importa?…”, poema de Florbela Espanca.

08.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu era a desdenhosa, a indif’rente. 

Nunca sentira em mim o coração

Bater em violências de paixão 

Como bate no peito à outra gente.

Agora, olhas-me tu altivamente.

Sem sombra de Desejo ou de emoção, 

Enquanto a asa loira da ilusão

Dentro em mim se desdobra a um sol nascente.

Minh’alma, a pedra, transformou-se em fonte;

Como nascida em carinhoso monte

Toda ela é riso, e é frescura, e graça!

Nela refresca a boca um só instante…

Que importa?… Se o cansado viandante 

Bebe em todas as fontes… quando passa?…

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“Mea Culpa”, poema de Antero de Quental.

07.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não duvido que o mundo no seu eixo
Gire suspenso e volva em harmonia;
Que o homem suba e vá da noite ao dia,
E o homem vá subindo insecto o seixo.

Não chamo a Deus tirano, nem me queixo,
Nem chamo ao céu da vida noite fria;
Não chamo à existência hora sombria;
Acaso, à ordem; nem à lei desleixo.



A Natureza é minha mãe ainda.
É minha mãe… Ah, se eu à face linda
Não sei sorrir: se estou desesperado;

Se nada há que me aqueça esta frieza;
Se estou cheio de fel e de tristeza…
É de crer que só eu seja o culpado!


Antero de Quental, in “Sonetos”

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