Nota biográfica

“Encandescente” é o pseudónimo de uma poeta de Setúbal cujo trabalho foi muito popular quando os blogues estavam no seu auge. Publicou três livros: Palavras Mutantes, Erotismo na Cidade e Encandescente. Subitamente, desapareceu, não voltando a publicar.

Encandescente – “Rotura”

02.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Todos os dias entro no mesmo dia.
Igual ao de ontem, ao de anteontem,
Ao que amanhã há-de vir.
Sei exactamente o que farei amanhã às quatro da tarde,
Assim como sei o que farei às duas,
Ou às dez.
A vida agenda programada,
Calendário viciado,
Rotina,
Destino,
Fado.
Dê-se à vida o nome que se quiser!
Eu, quero mais do que isto.
Quero tudo!,
Mesmo não sabendo o que tudo é.
Quero um destino grande num tempo pequeno,
Quero partir o ponteiro que me marca a hora
E sentir!
Desregradamente,
Intemporalmente,
Excessivamente,
Toda e qualquer emoção.
Sentir!
Sem condicionantes, moralismos, ditames ditados,
Preconceitos, obstáculos, conceitos assimilados,
Sentir!
Baixar as defesas, cortar as mordaças,
Abrir os braços, rasgar carapaças.
E sentir!
Partir o ponteiro que me marca o tempo,
Que o pontua, regula e compassa:
Sina… Calendário…Destino …Farsa…
Farsa… Calendário…Destino …Vida…
E sentir!
Mesmo que parta a cara,
Mesmo que fique de rastos,
Mesmo que nunca mais reúna os pedaços,
Quero rasgar o peito e abrir os braços…
E sentir o pulsar, a explosão,
E viver pura, límpida, única a emoção,
E dá-la dizendo:
Esta, sou eu!
Este é o meu tempo, o meu calendário,
O meu objectivo e itinerário,
Recusar a vida, dia programado,
Viver a emoção sem tempo marcado,
E sentir a paixão que me corre nas veias
Sem limites
Sem regras
Sem pejo
Sem peias.

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Encandescente – “Curriculum Vitae”

04.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nome:
Já me chamaram uns quantos
Apelido-me outros tantos
Alguns tão inomináveis
Que nem sequer os cito.
Idade:
A suficiente, não a bastante
Para ter juízo e não tenho
Para ser conforme e não sou
Para não sonhar tanto e sonho
Mas também para saber
Que já não serei o Che e não farei revolução.
Nacionalidade:
Imposta.
Nasci onde me pariram
Onde o acaso o ditou
Não escolhi pais ou pátria
Estou aqui. Calhou.
Estado:
Muitas vezes zangada
Outras vezes cansada
Com tanta merda que vejo
E por nada poder fazer
Para mudar o estado das coisas
Por isso o estado mais frequente
É a precisar de mudança e em ebulição.
Habilitações literárias:
Algumas
Tenho as estantes dobradas
Com o peso dos livros que tenho.
Formação académica:
Nenhuma
Mas sou muito bem educada
Até me chegar a mostarda ao nariz
E como nasci tesa e plebeia
Sem ascendentes importantes
E não bebi chá em pequenina
O verniz estala num instante.
Experiência:
Alguma
Nenhuma em áreas relevantes
Algumas muito interessantes
Outras pouco recomendáveis
Mas…
Para este curriculum não interessa nada.
Como o que vigora neste país
É a lei do desenrasca
Eu que tenho os nomes que me chamo
A idade que me apetecer
E sou uma pindérica sem cultura académica
Num país só de doutores
Considero-me qualificada
Para me desenrascar
Em qualquer função e em qualquer lugar.

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Encandescente – “Prescrição para males de amor”

19.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Amor é fogo que arde sem se ver; E
ferida que dói e não se sente; É um
contentamento descontente; É dor que
desatina sem doer”

Ah Camões
Se vivesses hoje em dia
Tomavas uns anti-piréticos
Uns quantos analgésicos
E Xanax ou Prozac para a depressão
Compravas um computador
Consultavas a página do Murcon
E descobririas
Que essas dores que sentias
Esses calores que te abrasavam
Essas mudanças de humor repentinas
Esses desatinos sem nexo
Não eram feridas de amor
Mas somente falta de sexo.

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Encandescente – Uma Cantiga de Seguir: “Em redor da vulva”

13.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Encandescente” é o pseudónimo de uma poeta de Setúbal cujo trabalho foi muito popular quando os blogues estavam no seu auge. Publicou três livros: Palavras Mutantes, Erotismo na Cidade e Encandescente. Subitamente, desapareceu, não voltando a publicar.
Vamos ouvir um trabalho de Encandescente classificado como “Cantigas de Seguir”, uma variante das “Cantigas de Escárnio e Mal-Dizer”.

Estava Encandescente pousada no seu descanso quando, ao acordar, a palavra vulva lhe apareceu e não a deixou mais. Daí que tenha nascido esta explicação em poema: Poema em redor da vulva

Acordo sempre com uma ou várias palavras na cabeça.
Geralmente sei como querem ser escritas
Apesar de já ter desistido de descobrir o porquê.
Um dia acordei com a palavra vulva a picar-me,
Desde esse dia não me larga
Acompanha-me para todo o lado,
E mesmo escrevendo outras palavras
Outros acordares,
A vulva está sempre presente
Desviando pensamentos e exigindo atenção.
Convenhamos que não é uma palavra poética
A vulva que me persegue,
E tem-me sido desagradável quer a companhia
Quer nela andar sempre a pensar.
Espero entender depressa porque me acordou
Como quer ser escrita
Para que quer ser escrita.
Para dar uso
Quer à vulva, quer à palavra.

A autora acabou por entender os desejos da palavra. Escreveu cinco “Cantigas de Seguir” usando Camões, Bocage, Florbela, Pessoa e Ary dos Santos.
Ouçamos a primeira: diria Camões à sua amada.

Como perdoar-me, minha amada, do rubor que o vosso rosto assolou?
Do tremor tão intenso que de vosso corpo se apossou,
Que vacilaste nos passos, e na relva fria caístes?
Como perdoar-me, minha amada, ter proferido a palavra, a indecência,
Que feriu mortalmente vossos ouvidos, e chocou vossa inocência?

Se indulgente, não fores, nem mais um verso escreverei.
Minha pena, minha amada, ante vós, eu quebrarei!
E nem mais um pato depenarei,
Se pena não tiverdes de minha alma penada.

A vossos pés, prostrado, a alma sangrando, vos rogo…

Ai minha amada!! Não me batais mais no cangote!!
Que eu perca já o outro olho se por baixo de vosso saiote,
Vossa vulva, eu espreitava ou intentava ver .

Diria Bocage entre folhos:

Eu, Bocage não seria, se ao vislumbrar uma vulva,
Não lhe descrevesse a forma, os eflúvios, o calor .
E não me caísse da mão a pena, e não me caísse a mão na vulva.
E não intentasse tomá-la, ser dono e senhor.

E à entrada do paraíso, eu Bocage, me postaria,
De porrete desembainhado, ajustando a pontaria,
E triunfante entraria na rubra vulva com meu porraz!
E assim, eu Bocage, aos outros mostraria, sem manos!
Do que um sadino é capaz!

Florbela suspiraria no canapé:

Ah… Meu amor…Vem com o vento…
Vem ligeiro e traz contigo o remédio, o unguento,
Para sarares este meu sofrimento….
Que o canapé já não aguento,
Se nele comigo, tu não te deitares…

Ah…. Meu amor… Souberas tu…
De como sem ti, a vulva não é vulva, mas brasa,
Que depressa chegarias,
Que voarias como o pensamento…
E nunca mais ninguém diria,
E nunca mais ninguém julgaria,
No trabalho… Um alentejano… Lento…

Pessoa questionar-se-ia:

Vi uma vulva.
Acho que era uma vulva….
Se não era uma vulva…Era uma vaca!
São muito traiçoeiros os nevoeiros na Dinamarca,
E as vacas parecem vulvas, e as vulvas parecem vacas.
Mas acho que era uma vulva a que vi no nevoeiro.
Mas se já vi mais vacas que vulvas,
Não estarei sonhando na vaca
A vulva que desejo….
E não tenho?

E, finalmente, um Ary arrebatado:

É na vulva que um homem mostra a força
E a rebeldia!
É na vulva que penetra a semente
E a anarquia!
É na vulva que o homem deixa
Orgasmo
E tesão!
É na vulva que começa a criação
Do operário!
É na vulva que começa a luta
Do proletário!
Vulva é revolução!

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Encandescente – “Um dia final de um mês qualquer”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Encontraram-se num jardim num dia aprazado
Um dia final, de um mês qualquer.
Ela riu:
– Estás ridículo nesse fato. Mas era o combinado.
Ele disse:
– E tu és só camisola e gola alta. Como tinhas prometido.
Sentaram-se num banco ao acaso
Porque o acaso os juntara
No acaso caminharam
E o acaso os levara àquele banco, áquele jardim
Onde trocando vidas riram dos sucessos e riram dos fracassos
E riram dos medos e das perdas
E das esperanças e das desilusões
Ele apertado num fato caro, a viola ao lado
Ela camisola de gola alta e caneta na mão.
Trocaram também silêncios porque a amizade
Não é só feita de palavras
Mas de compassos
De dar tempo ao tempo
De sabe esperar.
Ela disse:
– Anoiteceu, está lua cheia! Como tínhamos combinado.
Ele respondeu:
– Pedi hoje à lua o brilho como te tinha prometido.
E juntos caminharam até à ponte acordada
Onde entoaram trovas à lua
Cantos de vida
Gritos de revolta
Ele de fato novo e uma viola que ria
Ela de gola alta e caneta arma na mão.
E a noite era deles, porque única, prometida
Porque era a noite de rindo de si
Rir da vida
Porque era a noite de soltar pranto
Grito e voz.
E a cidade parou para ouvir o canto
E a cidade surpresa olhou com espanto
Quem ousava quebrar o silêncio da cidade morta
Quem se suspendia na ponte que separa as margens
Entre a vida igual e a vida prometida.
E em baixo o rio era corrente contínua
Nunca antes quebrada, inalterável, monótona.
E na ponte prometida olharam a corrente
E na ponte prometida deram um passo em frente
Ele de fato novo, ela de gola alta.

E no dia seguinte a cidade viu assombrada
No rio parado que separa as margens contínuas da vida
Um fato novo que tocava uma guitarra
E uma camisola cara empunhando uma caneta e dizendo palavras
inauditas.
Nunca se encontrou quem a roupa vestiu
Quem no banco do acaso ao acaso se sentou
Quem com um passo em frente ousou rindo da vida
Rindo de si
Parar o rio
Quebrar as correntes
Estender a mão
E guardar liberdade.

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Encandescente – “Palavras-caravela”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Podia escrever,
(Se para ai estivesse virada ou tal coisa me apetecesse).
As palavras de amor mais belas,
Que altaneiras como caravelas,
Vogariam no mar de encontros e desencontros que é o amor.
E ficar vendo da minha janela,
As minhas,
E outras palavras-caravela,
Tomando rumo e partir.
Ou poderia em vez disso inventar um novo desporto,
E tentar da minha janela
Ou de um local qualquer do porto,
De onde partem todas as palavras de amor,
(Que sei que existe mas não onde fica).
Todas as palavras têm um porto
Onde permanecem,
Até que prontas podem partir.
E eu escondida,
Á janela ou num canto do porto,
Dispararia para as velas das palavras-caravela
Com uma daquelas espingardas de chumbos com que brincava em criança,
E uma a uma vê-las-ia afundar.
E uma a uma vê-las-ia sucumbir.
Mas sei que por cada palavra que afundasse uma outra surgiria
E não teria mãos nem chumbos,
Para todas fazer naufragar.
Ah…. Tanta palavra de amor se sente e se escreve.
Que a única paisagem que vejo da minha janela,
São palavras-caravela
Procurando um rumo,
Procurando um nome.
O nome que sonha
Quem no mar as lançou.

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