António Nobre – “Quando Chegar a Hora”
22.07.2016
Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abade,
Oiça isto que lhe peço:
Mande-me abrir, ali, uma cova á vontade,
Olhe: eu mesmo lh’a meço…
O coveiro é podão, fa-las sempre tão baixas…
O cão pode lá ir:
Diga ao moço, que tem a prática das sachas,
Que m’a venha ele abrir.
E o sineiro que, em vez de dobrar a finados,
Que toque a Aleluia!
Não me diga orações, que eu não tenho pecados:
A minha alma é dia!
Será meu confessor o vento, e a luz do raio
A minha Extrema-Unção!
E as carvalhas (chorai o poeta, encomendai-o!)
De padres farão.
Mas as águias, um dia, em bando como astros,
Virão devagarinho,
E hão-de exumar-me o corpo e levá-lo-ão de rastros,
Em tiras, para o ninho!
E ha-de ser um deboche, um pagode, o demónio,
N’aquele dia, ai!
Águias! sugai o sangue a vosso filho Antonio,
Sugai! sugai! sugai!
Raro têm de comer. A pobreza consome
As águias, coitadinhas!
Ao menos, n’esse dia, eu matarei a fome
A essas desgraçadinhas…
De que serve, Sr. Abade! o nosso pacto:
Não me lembrei, não vi
Que tinha feito com as águias um contrato,
No dia em que nasci.
(Da obra “Só”)
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