Nota biográfica >>

José Gomes Ferreira (Porto, 9 de Junho de 1900 - Lisboa, 8 de Fevereiro de 1985) foi um escritor e poeta português. Estudou nos liceus de Camões e de Gil Vicente onde teve o primeiro contacto com a poesia. Colaborou com Fernando Pessoa, ainda muito jovem. Está em todos os grandes momentos "democráticos e antifascistas" e colabora com outros poetas neo-realistas num álbum de canções revolucionárias compostas por Fernando Lopes Graça, com a sua canção "Não fiques para trás, ó companheiro".

José Gomes Ferreira – “Panfleto…”

12.05.2014

Sofro, noite!

Não as dores metafísicas que os homens suam nas estrelas 

para enfeitarem a fome da aristocracia das nuvens.

Não o terror súbito de nos vermos sozinhos na terra 

sem uma voz nos astros que nos diga: “Cá estamos nós

também!”

Não a tortura de saber se existe ou não existe 

um Deus de carne igual à nossa a dar ordens às pedras.

Não a agonia dos lamentos que saem dos poços para o céu 

e erram de árvore em árvore, de monte em monte, de corola

em corola 

com lobos voadores nos uivos dos vendavais.

Não o suor dos anjos na via láctea. O anseio do infinito. A

angústia da sombra

sem raízes.

Não o sufocar da treva no corredor cada vez mais estreito,

cada vez mais

estreito, cada vez mais estreito… 

Não o assombro dos lírios negros. O gemer das almas nos

cruzeiros 

e todos os sofrimentos da lua habitada por fantasmas…

… Mas por outras razões mais desesperadamente vis,

mais limitadamente exíguas e diretas,

como esta mulher de xaile aqui na minha frente

a sofrer o mistério da fome

perdida na noite imensa,

na noite inquieta,

na noite absurda

cheia de crianças a chorar

lágrimas para além das estrelas,

ah! mas mais profundas e eternas

do que todos os mistérios do universo

com o céu e o inferno dentro da cabeça dos homens.

Lágrimas! – ouviste, noite?

Lágrimas de crianças espantadas de haver olhos sem lágrimas

na vida.

Lágrimas de carne humana a rasgarem o frio dos penedos 

e a molharem de lume o clamor dos bichos

presos à solidão da terra.

Lágrimas, ouviste?

Ah! poetas: não olhemos mais para o céu.

Deixemos os mistérios para depois

quando não houver na noite 

outras razões de sofrer mais vis.

Não olhemos mais para o céu!

Abaixo as estrelas, a lua, a via láctea 

e todo esse espectáculo de luzes 

como um candelabro de cometas 

a iluminar a festa da miséria

no palácio do mundo.

Abaixo os astros! Essas caricaturas das lágrimas dos homens

de propósito belas e suspensas

para nos esquecermos das outras

que nos doem, nos olhos,

a inutilidade de chorara.

Lágrimas! – ouviste, noite?

Lágrimas de grito!

Lágrimas de beber!

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