Nota biográfica >>

A primeira página de grandes obras da literatura.

“Os Sensos Incomuns”, de Maria Isabel Barreno

24.02.2014

Publicado originalmente em 1993, este livro de contos foi galardoado no ano da sua publicação com o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco e Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores, e, em 1994, com o Prémio P.E.N. Clube, na categoria de ficção.

Começou a ler o livro num sábado de manhã. Um amigo seu tinha-lho recomendado. Belíssimo, dissera, há uma personagem feminina comovente, linda, tão misteriosa que é uma presença quase ténue, no livro, um fio de existência feito só de indícios, e de súbito reparamos que a personagem se instalou em nós, no coração, no ar que respiramos. Como se tivesse saltado das páginas do livro, literalmente, repetia o amigo, como se tivesse saído do livro e o seu destino viesse fundir-se ao nosso quotidiano.
Ele confiava na opinião daquele amigo. Gostava de passar os fins-de-semana de Inverno em casa, estirado no sofá da sala, lendo. Por isso sexta-feira à tarde foi comprar o livro antevendo com volúpia todo o desenrolar do processo: sair da livraria sentindo o livro nas mãos (era absolutamente impossível pedir emprestado um livro quando se tratava de saboreá-lo), desfazer o embrulho em casa, devagar, cheirar o livro (adorava o cheiro dos livros novos), mirar a capa dum lado e do outro, ler as badanas, deixar o livro pousado em cima da mesa da sala enquanto ia à cozinha preparar e comer o seu jantar (ele vivia sozinho); voltar à sala, olhar o livro de longe, aguçando o desejo; quase ceder à tentação de começar imediatamente a ler; resistir, aguçar ainda mais o desejo, decidir não, hoje à noite vou sair, amanhã sim. E o sábado chegou com uma cor amarela, cor da alegria, apesar de estar um dia chuvoso.
Começou a ler o livro sábado de manhã. Leu as primeiras vinte páginas com avidez. Sim aí estava ela, a tal comovente e ténue personagem feminina, fio secreto de todo o enredo. Era uma obra de arte, finamente cinzelada nas entrelinhas, entrevista, prometida. Prometido o encontro, leu mais vinte páginas, a inevitável desvelação não se anunciava mais próxima. A mulher entrara na sua pele como a mais insidiosa das amantes, mas permanecia feita só de obcecantes indícios, ameaçadoramente esfíngica. As páginas seguintes foram-se tornando progressivamente torturantes, cansativas, frustrantes. Corpo feito de entrelinhas, a mulher nada oferecia, revelava-se, recusava-se. Um jogo, infindo de coqueteria, um baixar de olhos, de pálpebras.

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