Alexandre O’Neill – “O cheiro a cera e a incenso”
07.06.2012
O cheiro a cera e a incenso sobe da infância e é recordado
pelo olfacto da memória. Há certos cheiros que persistem
vida fora. O cheiro da relva recém-cortada frente à casa, o
cheiro-maçã de esperma nos lençóis, o cheiro dos cavalos
depois duma caminhada, o cheiro-estalido da lenha na
lareira, o cheiro de roupa de linho no estendal por detrás da
casa, o cheiro silvestre da minha primeira namorada, o
cheiro dos velhos álbuns de fotografias (cheiro de morte,
mas com cheiro de vida lá dentro) sobretudo quando se sabe
que o almirante navega há muitos anos num mar para
colorir. Um avô almirante que eu nunca vi numa pose de
leão dos mares para a fotografia (um cheiro a vaidade, que
se perdoa tanto tempo depois,) o cheiro da catequista da
igreja de S. Jorge de Arroios por quem eu estava
apaixonado, cheiro de castos lençóis, provavelmente os mesmos de
Camilo Pessanha. O cheiro de santidade, o cheiro de
inveja que se desprende de certa gente malina e de certos lugares
aziago o cheiro a guarda-chuva molhado e abandonado
como um
pássaro morto. O cheiro de flores apodrecidas
em
amarelentos solitários. O cheiro a corpo queimado que
anuncia a presença do demo esse que vem cheirar os cheiros
que são muito nossos para roubar a memória do que fomos
sendo nos laços e lacetes da existência.
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