Palavras 160 – “Ary dos Santos”
29.03.2012
Exagerado, provocador, forte, por vezes violento com as palavras,
grande declamador da sua poesia, era assim Ary dos Santos.
Foi publicitário, indústria onde deixou trabalhos ainda hoje recordados
(“Minha lã, meu amor”); viveu o mundo da canção popular a quem emprestou
muitas das suas vibrantes palavras (A Desfolhada, Menina do Alto da Serra,
Tourada, Invenção do Amor, Estrela da Tarde, Canção de Madrugar,
Quando um homem quiser, e tantas, tantas outras). Deu alimento a grandes
vedetas da música portuguesa, de Amália Rodrigues a Carlos do Carmo,
Tonicha, Simone de Oliveira, Fernando Tordo, etc., etc.
Ary dos santos deixou-nos há 28 anos, faleceu em Janeiro de 1984, e num
texto de Manuel Gusmão, num ensaio que acompanha a edição de oito dos
seus poemas, pode ler-se: “José Carlos Ary dos Santos tem 46 anos e
sabe que vai morrer. Sabendo-o, escreve: poemas, sonetos”.
Nos últimos meses de 1983, quando já se encontrava gravemente doente,
José Carlos Ary dos Santos decidiu trabalhar para a publicação de um
livro de 35 sonetos. Aos numerosos amigos que o visitaram durante a
doença deu duas razões para este projecto: por um lado, aproveitar o
tempo que a doença o forçava a passar em casa; por outro, ultrapassar
as limitações que por ela lhe eram impostas quanto a trabalho recorrendo
a uma forma poética — o soneto — que dominava e não exigia grande esforço
físico de escrita que lhe era já penoso.
Dos 35 sonetos previstos, apenas oito haviam sido completados à data da morte,
em 18 de Janeiro de 1984.
No 10º aniversário da Revolução de 25 de Abril, o Partido Comunista
Português publicou esses oito sonetos, num projeto gráfico de Rogério Ribeiro
e acompanhado de um ensaio, já referido, de Manuel Gusmão.
Numa homenagem ao grande poeta e ao companheiro de trabalho que acompanhei
durante anos, vou ler, de seguida, esses oito sonetos.
Ao meu falecido irmão
Meu sacana de versos! Meu vadio.
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sarjeta. E um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.
Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio
têm joanetes culturais na tola.
Que diria Camões, nosso padrinho
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?
O que me vale é que não estou sozinho
ainda se encontram alguns pés de linho
crescendo não sei como na estrumeira!
Insónia
As noites — escorpiões suicidados
Com o seu próprio veneno nas entranhas
ressuscitam depois em madrugadas
cada vez mais azuis e mais estranhas.
São insónias tecendo alucinadas
uma teia de horas e de aranhas
patas tácteis peludas eriçadas
com o peso latente das montanhas.
E por dentro dos olhos um perfil
de ferro e fogo deixa-nos queimados
selados como a chuva e como o vento.
Será possível que depois de Abril
ainda adormeçamos acordados
neste país-raiz de sofrimento?
Poesia-orgasmo
De sílabas de letras de fonemas
se faz a escrita. Não se faz um verso.
Tem de correr no corpo dos poemas
o sangue das artérias do universo.
Cada palavra há-de ser um grito
um murmúrio um gemido uma erecção
que transporte do humano ao infinito
a dor o fogo a flor a vibração
A Poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?
Ouve como quiser seja o que for
Fazer poemas é escrever amor
e poesia o que tem de ser é orgasmo.
Sonata de Outono
Inverno não ainda mas Outono
a
sonata que bate no meu peito
Poeta distraído cão sem dono
até na própria cama em que me deito.
Acordar é a forma de ter sono
O presente o pretérito imperfeito
Mesmo eu de mim me abandono
se o vigor que me devo não respeito.
Morro de pé, mas morro devagar.
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.
Não me deixo ficar. Não pode ser.
Peço meças ao Sol, ao Céu, ao Mar
Pois viver é também acontecer.
Soneto de Inês
Dos olhos corre a água do Mondego
Os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.
Amor imenso que também é cego
Amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
Morta tão cedo por viver demais.
Os teus gestos são verdes os teus braços
são gaivotas pousadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.
As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços.
Inês! Inês! Inês de Portugal.
Telegrama para Gomes Leal
Tia Maria Poesia a acabar.
Stop. Vem depressa. Testamento incerto.
É certo que não tinha que deixar
mais que um saldo no banco a descoberto.
Anda a crítica toda a farejar.
Os enteados rondam muito perto.
Volta depressa ó meu. O teu lugar
é aqui ajudando neste aperto.
Toma a carreira Inferno-Portugal.
Fizeste-a tantas vezes! E a viagem
agora de caixão é mais barata.
Vem-me ajudar a consolar a tia.
A Natália está lá. Não a Sofia
Cara-de-cu que sempre foi ingrata.
Memória de Adriano
Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
copo de vinho de alegria sã
sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa de amanhã.
Foste sempre o cantor que não se agarra
o que à terra chamou amante e irmã
mas também português que investe e marra
voz de alaúde rosto de maçã.
O teu coração de ouro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.
Resta de ti a ilha dum tesouro
a jóia com as pedras mais antigas.
Não é saudade, não! É amizade.
Infância
Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.
A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.
Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.
Talvez a tua voz que ainda me fala…
… o meu berço enfeitado a buganvília…
Tenho tantas saudades, minha mãe!
Ouvimos o “Palavras de Ouro” 160, dedicado aos oito últimos poemas escritos por José Carlos Ary dos Santos.
Podcast (estudio-raposa-audiocast): Download