Nota biográfica >>

António Pereira Nobre (Porto, 16 de Agosto de 1867 — Foz do Douro, 18 de Março de 1900), mais conhecido como António Nobre, foi um poeta português cuja obra se insere nas correntes ultra-romântica, simbolista, decadentista e saudosista (interessada na ressurgência dos valores pátrios) da geração finissecular do século XIX português.

António Nobre – “Purinha”

14.01.2012

o Espírito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera,
Que (aonde ainda não sei) neste Mundo me espera;
Aquela que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Senhor Padre me dará pra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Há-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabelo em cachos, cachos de uvas,
E negro como a capa das viúvas …
(À maneira o trará das virgens de Belém
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhais,
Fusos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua boca uma romã,

Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la,
Cabrinhas-montesas da Serra da Estrela …
E há-de ser natural como as ervas dos montes
E as rolas das serras e as águas das fontes,
E há-de ser boa, excepcional, quase divina,
Mais pura, mais simples, que moça e menina.
Deus, pela voz dos rouxinóis há-de gabá-la

E os rios ao passar hão-de cantá-la.
Seu virgem coração há-de ser tão branquinho,
Que não há neste Mundo a que igualá-lo: o linho
Que, em roca de cristal, fiava a minha Avó
Parecerá de crepe, e a neve … far-me-á dó,
Mais a farinha do moleiro e a violeta,
E a Lua para mim será como uma Preta!

Mas em que Pátria, em que Nação é que me espera
Esta Torre, esta Lua, esta Quimera?
Fui ter com minha Fada e disse-lhe: “Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?”
E a minha Fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá em baixo, ao pé do Mar …

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!

E no dia do meu recebimento!
Manhã cedo, com luar ainda no Firmamento,
Quando ainda no Céu não bole uma Asa,
A minha Noiva sairá de casa
Maila sua Mãe, mailos seus Irmãos.
E há-de sorrir, e hão-de tremer-lhe as mãos …
E a sua Ama há-de segui-la até à porta,
E ficará, coitada! como morta!
E há-de ser triste vê-la, ao longe, ainda … olhando,
Com o avental seus olhos enxugando …
E hão-de cercá-la sete Madrinhas;
Que hão-de ser sete virgens pobrezinhas,
Todas contentes por estrear vestido novo!
E, ao vê-las, suas mães sorrirão dentre o Povo …
E o povo da freguesia
Esperará mais eu, no adro de Santa Iria.
E hão-de mirar-me com seu ar curioso,
E hão-de cercar-me, num silêncio respeitoso.
E eu hei-de-Ihes falar das colheitas, da chuva,
E dir-me-ão “que já vai pintando a uva … ”

E animados então (o Povo é uma criança!)
Porque o Sr. Doutor lhes deu confiança,
“Que Deus o ajude” dirá um, e o Regedor:
“Vá coa Graça de Nosso Senhor!”
E eu hei-de agradecer, sorrir, gostar.
Mas o Anjo, no entanto, não deve tardar …
E d’entre o grupo exclamará um Velho, então:
“Já nasce o dia!” eu olharei … mas não:
É a minha Noiva que parece dia,
Luzente como a cal de Santa Iria!
E ao vê-la tão branca, de branco vestida,
Ao longe, ao longe, hei-de cuidar ver uma Ermida!
E dirá o Pastor, com espanto tamanho,
Que é uma Ovelha que fugiu do seu rebanho!
E o João Maluco dirá que é o Luar de Janeiro!
E o Pescador explicará ao bom Moleiro
Que é tal-qualzinha a sua Lancha pelo Mar!
E o Moleiro dirá que é o seu Moinho a andar!
Que assim já foram as velhinhas cismarão,
E as netas, coitadas! que, um dia, o serão …
Mas o Anjo assomará, à porta da capela,
E eu branco e trémulo hei-de ir ter com ela.
E a estrela deitar-me-á a bênção dos seus olhos
E uma aldeã deitar-lhe-á violetas, aos molhos!
E a Bem-Amada entrar na igreja há-de …
E há-de casar-nos o Senhor Abade.
E, em seguida, será a nossa boda,
E festas haverá, na aldeia toda.
E as mais raparigas do sítio, solteiras,
Hão-de bailar bailados sobre as eiras,
Com trinta moedas de oiro sobre o peito!
E cantigas dirão a seu respeito
E a Noiva em glória, perpassando nas janelas,
Sorrirá com simplicidade para elas.
E a noite, pouco e pouco, descerá …
E tudo acabará.
E depois e depois, o Anjo há-de se ir deitar,
E a sua Mãe há-de a abraçar … E hão-de chorar!
E a sua alcova deitará sobre o jardim,
Onde uma fonte correrá, entre alecrim:
E, ao ouvi-la cantar, deitadinha na cama,
O Anjo adormecerá, cuidando que é a sua Ama …
Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra
Que este Palácio de Ventura encerra?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: “Madrinha!
Acaso nunca te mentiu tua varinha?”
E a minha fada com sua vara de condão
Nos ares escreveu com três estrelas: “Não!”

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas! lindas meninas
Do Reino de Portugal!

O nosso Lar!
Minha Madrinha!, ajuda-me a sonhar!
Que a nossa casa se erga d’ entre uma eminência,
Que seja tal qual uma residência,
Alegre, branca, rústica, por fora.
Que digam: “É o Senhor Abade que ali mora … ”
Mas no interior ela há-de ser sombria,
Como eu com esta melancolia:
E salas escuras, chorando saudades …
E velhos os móveis, de antigas idades …
(E, assim, me iluda e, assim, cuide viver
Noutro século em que eu deveria nascer.)
E nas paredes telas de Parentes …
E janelas abertas sobre os poentes …
(E a Quimera lerá o seu livro de rezas … )
E cravos vermelhos por cima das mesas …
E o relógio dará as horas devagar,
Como as palpitações de quem se vai finar …

E, o dia todo, neste claustro e solidão,
Passarei a esquecer, ao canto do fogão;
E a cismar e a cismar sem que me veja alguém
Na Dor, na Vida, em Deus, nos mistérios do Além?
E eu o Astrólogo, o Bruxo, o Aflito, o Médio,
Rogarei aos Espíritos remédio
E um bom Espírito virá tratar do Doente
E há-de fugir com susto a outra gente.
E a Noite descerá, pouco e pouco, no entanto,
E a Noite embrulhará o Aflito no seu manto!
Mas a Purinha, então, vindo da rua,
Toda de branco surgirá, como uma Lua!
E, ao vê-la, acordarei, meu Deus de França!
E pela mão me levará, como uma criança.
E eu pálido! e eu tremendo! e o Anjo pelo caminho,
“Não te aflijas … ” dirá, baixinho …

E, assim, será piedosa para os mais:
E há-de entrar na miséria dos casais,
Nos montes mais altos, nos sítios mais ermos,
E será a Saúde dos Enfermos!
E quando pela estrada encontrar um velhinho
Todo suado, carregadinho,
(Louvado seja Nosso Senhor!)
Há-de tirar seu lenço e ir enxugar-lhe o suor!
E às aves, em prisão, abrirá as gaiolas.
E aos sábados, o dia das esmolas,
A Santa descerá ao patamar da escada,
(Envolta, sem saber, numa capa estrelada)
Esmolas, distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos
E mais aos aleijadinhos,
Mais aos que deitam sangue pela boca,
Mais aos que vêm cantar, numa rabeca rouca,
Amores, naufrágios e A Nau Catrineta,
Mais aos Aflitos que andam no Planeta,
Mais às viúvas dos Degredados …
E tudo seja pelos meus pecados!
E há-de coser (serão os remendos de flores)
As velas rotas dos pescadores
E a luz do seu olhar benzerá essas velas
E nunca mais hão-de rasgar-lhas as procelas!
E acenderá os círios ao Senhor,
(Que sejam como ela no talhe e na cor)
Quando houver temporal… e eu vier prà sacada
Ver os relâmpagos, ouvir a trovoada!
E nisto só resumir-se-á a sua vida:
Vestir os Nus, aos Pobres dar guarida,
Falar à alma que na angústia se consome,
Dar de comer a quem tem fome,
Dar de beber a quem tem sede …

E, lá, do Alto, Jesus dirá aos Homens: “Vêde … ”
E eu hei-de em minhas obras imitá-la.
E amá-la como à Virgem e adorá-la.
E a Virgem há-de encher com a mesma paixão
As marés-vazas deste pobre coração
Que tanto teve e hoje nada tem,
Nem mesmo aquilo que vós tendes, Mãe.
E será a Mamã que me há-de vir criar,
Admirável Joaninha d’Arc,
Meu novo berço duma Vida nova!
E há-de ir comigo para a mesma cova,
Pois que no dia em que eu morrer
Veneno tomará, numa colher …
Mas em que sítio, aonde? aonde? é que se esconde
Esta Bandeira, esta Índia, este Castelo, aonde? aonde?
Fui ter com minha Fada, e disse-lhe: “Madrinha!
Mas pode haver, assim, na Terra uma Purinha?”
E a minha Fada com sua vara de marfim
Nos ares escreveu com três estrelas: “Sim!”

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!

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