Otília Martel (Menina Marota) sobre Manuela Nogueira

08.01.2009

Uma malfadada gripe que me tem atormentado só me permitiu hoje, ler e ouvir, a poesia de Manuela Nogueira, sobrinha de Fernando Pessoa que, a par do Dr. Miguel Roza, são os dois últimos sobrinhos vivos do Poeta, num momento que foi disponibilizado no Programa Palavras de Ouro 136, do Estúdio Raposa.
Conheci a literatura de Manuela Nogueira através do seu livro “O Melhor do Mundo são as crianças” que inclui poesias de Fernando Pessoa dedicadas às crianças e ainda de
“Quarteto a Solo”, em parceria com Madalena Férin e outros, bem como de alguma da literatura infantil que escreveu, adquirida para ofertar a jovens familiares.
Não sei se Manuela Nogueira herdou de Fernando Pessoa, seu Tio, os genes da escrita, porque não sei se eles são hereditários, já que a minha formação não engloba este assunto, o certo é que muito terá contribuído a dedicação que ele lhe votava, tal como ao seu irmão Miguel, transparecida nos poemas que a ambos dedicou, bem como o acesso directo e testemunhado de um património literário sem par.
Nos seus inúmeros heterónimos Fernando Pessoa relata muito do tempo vivido e as experiências pessoais que tece com o mundo, o que ele sente e o que ele vê desse próprio mundo.
A sua infância perturbada por vários acontecimentos, levam-no a dedicar, talvez, uma afeição à família que visitava regularmente, saindo da solidão a que tantas vezes se remetia.

“Só, é o ofício de escrever
Só, é o acto de nascer
Só, é o tempo de morrer.”

[…]

“Ás vezes tem forma de verso
Outra, é um correr de palavras como água
que desliza do meu pensamento.
Depois adormeço, numa mágoa sem nexo.

Sei que estou viva porque tenho sexo.” (Manuela Nogueira)

Neste poema recordo Alberto Caeiro quando nos diz:

“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.
Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.” (in Fernando Pessoa, Obras Completas, I volume, pág. 222)

Já o sentimento é controverso, quando Manuela nos diz:

“fui encontrando farrapos de alma
em caminhos obscuros
na miragem de espantosos poentes
engravidei de muitas esperanças.
Quase uni pedaços desavindos
quase soltei vivos demónios
com amigos e inimigos fiz alianças.
Travei o precipício do efémero
e nesse instante acordei só.”[…] (excerto)

“reconheço” nesta palavras de Manuela, a visão de um dos heterónimos que eu mais aprecio de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro que nos diz, na sua vasta obra:

“O que nós vemos das coisas são as coisas.
Porque veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Porque é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.” (in Fernando Pessoa, Obras Completas, I volume, pág. 196)

Ler os sentimentos de Manuela Nogueira não foi novidade para mim.
A sua literatura consta da minha estante como, talvez, um aprofundar do elo de ligação a Fernando Pessoa, um poeta que me acompanha, em quase todas as fases da minha vida, desde a meninice.
Parabéns a Luís Gaspar por ter dado voz à poesia de Manuela Nogueira, na sua forma tão peculiar de recitar.
Grata a ambos por este momento.

Um abraço
Otília Martel (Menina Marota)

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