Poema (sem título), de Egito Gonçalves.
06.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
José Egito de Oliveira Gonçalves, mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor português. Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como atividade profissional a administração de uma editora. (8 de abril de 1920, Matosinhos - 29 de janeiro de 2001, Porto) Wikipédia
06.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sinto sob a nuca o pulsar
das tuas ancas. Escrevo
no puro azul do ar
a fórmula do teu nome,
o destino, este fogo. A calma
da manhã dá-me
o silêncio suave de te ter,
de esquecer a fronteira…
Estás, longe do luto, da cidra
solitária. Uma ave
— cegonha ou garça? — agita
o céu da gândara, as linhas
da ternura. Um outono
de orvalho, comovido,
veste-me — ou é
a água dos teus lábios?
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04.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
já tentaste praticar o bem
fazendo mal?
já tentaste praticar o mal
fazendo bem?
já tentaste praticar o bem
fazendo bem?
já tentaste praticar o mal
fazendo mal?
já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?
já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?
já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?
e o contrário, já tentaste?
já?
seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga.
Alberto Pimenta, in ‘Prodigioso Acanto’
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02.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Chega através do dia de névoa alguma coisa
do esquecimento,
Vem brandamente com a tarde a oportunidade
da perda.
Adormeço sem dormir, ao relento da vida.
É inútil dizer-me que as ações têm
consequências.
É inútil eu saber que as ações usam
consequências.
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.
Através do dia de névoa não chega
coisa nenhuma.
Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante
anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.
Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.
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01.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
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31.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
No começo do amor, quando as cidades
nos eram desconhecidas, de que nos serviria
a certeza da morte se podíamos correr
de ponta a ponta a veia eléctrica da noite
e acabar na praia a comer morangos
ao amanhecer? Diziam-nos que tínhamos
a vida inteira pela frente. Mas, amigos,
como pudemos pensar que seria assim
para sempre? Ou que a música e o desejo
nos conduziriam de estação em estação
até ao pleno futuro que julgávamos
merecer? Afinal, o futuro era isto.
Não estamos mais sábios, não temos
melhores razões. Na viagem necessária
para o escuro, o amor é um passageiro
ocasional e difícil. E a partir de certa altura
todas as cidades se parecem.
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27.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sonho que sou a Poetisa eleita,
Aquela que diz tudo e tudo sabe,
Que tem a inspiração pura e perfeita,
Que reúne num verso a imensidade!
Sonho que um verso meu tem claridade
Para encher todo o mundo! E que deleita
Mesmo aqueles que morrem de saudade!
Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!
Sonho que sou Alguém cá neste mundo…
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando.
Acordo do meu sonho… E não sou nada!.
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23.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quando o homem atinge
aproximadamente a sua medida
rebentam as lágrimas nas mais altas serranias
e assim nasce
algures um povo
um espelho de prata
na vastidão de um leito.
Uma espécie de descoberta
inútil
mas que sempre será celebrada
como uma imensa revoada de pombos.
Nada a fazer
o palhaço
está caído entre os seus símbolos
a gritar para além do vidro
à chuva
sobre a evidência da terra empapada.
Um homem
um fruto
ou melhor
um minúsculo som
engaiolado na janela
aberta
na tua carne fremente.
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19.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
É o frio que nos tolhe ao domingo
no Inverno, quando mais rareia
a esperança. São certas fixações
da consciência, coisas que andam
pela casa à procura de um lugar
e entram clandestinas no poema.
São os envelopes da companhia
da água, a faca suja de manteiga
na toalha, esse trilho que deixamos
atrás de nós e se decifra sem esforço
nem proveito. É a espera
e a demora. São as ruas sossegadas
à hora do telejornal e os talheres
da vizinhança a retinir. É a deriva
nocturna da memória: é o medo
de termos perdido sem querer
a nossa vez.
Rui Pires Cabral, in ‘Longe da Aldeia’
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16.08.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Como te amo? Não sei de quantos modos vários
Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te com o fervor dos meus sentidos gastos;
Amo-te com o fervor dos meus preitos diários.
É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mares altisonos e vastos;
É suave como o odor de lírios solitários.
Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;
Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,
Muito maior será na paz da sepultura!
Fernando Pessoa, “Inéditos – Poemas de Lança-Pessoa – Manuscrito (Junho/1902)
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08.07.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.
In Os Poemas Possíveis, 1966, p. 140.
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12.05.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar
TRÊS NEGATIVOS E UMA DISSONÂNCIA PARA EUGÉNIO DE ANDRADE
Não era o pampilho.
Mas ao acaso o poeta chama os amarelos da tarde, entre o silvo de dois
aviões, e o destino se cumpre das coisas. De todos, só ele ousará semear, frágeis assim de nome e de espécie,
minúsculas manchas de alegria no mais branco de seus cadernos.
Não trago ainda «A Vida das Abelhas».
Que mais fácil, pergunto, será o esquecer do que fazem em Maeterlinck
quantos enxames, que sentido têm seus sentidos? Leva-se o dia ocupado em descobrir da outra, da pequena vagabunda
italiana, a secreta receita para o fabrico do mel.
Não o de Domingos Peres das Eiras.
Através dele o rosto vem do poeta, erguido para a cidade essa que é uma
coroa dorida de navios encalhados. Já rio nenhum separa os dois rostos.
A voz a voz se juntou, e aos assaltantes um desafio apenas lançado: «Na cidade se está, se é. E nem mesmo o poema, por violento e de sangue,
detém a nortada de abril, o poeta, seu mês.»
Estas, as palavras, por aqui resvalam até o pó, pois que pó é o pó ou a luz?
Da cal de Tavira à bruma de agora encharcadas: insubmissas, ternas como
os animais de fogo. Um grito se pedia, nem de pomba nem de cabra, para que de palavra fosse,
sal da efémera palavra. E aí ficava também, nos versos do poeta. Quer dizer, neste tempo que temos: tão de fulgor, tão escasso.
Poema de Mário Cláudio, ilustração de Alfredo Luz, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
06.05.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…
Para que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe…
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26.03.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não é um poema, mas é como se fosse!
Diz, o escritor Eduardo Galeano:
Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: eu mato para roubar.
As guerras invocam, sempre, motivos nobres, matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e se por via das dúvidas nenhuma dessas mentiras for suficiente, aí estão os grandes meios de comunicação dispostos a inventar novos inimigos imaginários para justificar a conversão do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro.
Em Rei Lear, Shakespeare, escreveu que neste mundo os loucos guiam os cegos e quatro séculos mais tarde, os senhores do mundo estão loucamente apaixonados pela morte, que transformaram o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou de doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares, três milhões de dólares por minuto, na indústria militar que é uma fábrica de morte.
As armas exigem guerras e as guerras exigem armas, e os cinco países que dominam as Nações Unidas, que têm poder de veto nas Nações Unidas, acabam por ser também os cinco principais produtores de armas.
Alguém perguntará, “Até quando?”
Até quando a paz mundial estará nas mãos daqueles que fazem o negócio da guerra? Até quando vamos continuar a acreditar que nascemos para extermínio mútuo? E que o extermínio mútuo é o nosso destino?
Até quando?
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04.03.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar
Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.
Nuno Júdice, in ‘Pedro, Lembrando Inês’
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14.12.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: – a luz do dia!
– Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
– Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
– Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!
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13.12.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Hoje é um dia reservado ao veneno
e às pequeninas coisas
teias de aranha filigranas de cólera
restos de pulmão onde corre o marfim
é um dia perfeitamente para cães
alguém deu à manivela para nascer o sol
circular o mau hálito esta cinza nos olhos
alguém que não percebia nada de comércio
lançou no mercado esta ferrugem
hoje não é a mesma coisa
que um búzio para ouvir o coração
não é um dia no seu eixo
não é para pessoas
é um dia ao nível do verniz e dos punhais e esta noite
uma cratera para boémios não é uma pátria
não é esta noite que é uma pátria é um dia a mais ou a menos na
alma como chumbo derretido na garganta um peixe nos ouvidos
uma zona de lava
hoje é um dia de túneis e alçapões de luxo
com sirenes ao crepúsculo
a trezentos anos do amor a trezentos da morte
a outro dia como este do asfalto e do sangue
hoje não é um dia para fazer a barba
não é um dia para homens
não é para palavras
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01.11.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
São mortos os que nunca acreditaram
Que esta vida é somente uma passagem,
Um atalho sombrio, uma paisagem
Onde os nossos sentidos se poisaram.
São mortos os que nunca alevantaram
De entre escombros a Torre de Menagem
Dos seus sonhos de orgulho e de coragem,
E os que não riram e os que não choraram.
Que Deus faça de mim, quando eu morrer,
Quando eu partir para o País da Luz,
A sombra calma de um entardecer,
Tombando, entre doces pregas de mortalha,
Sobre o teu corpo heróico, posto em cruz,
Na solidão dum campo de batalha!
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15.10.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
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13.10.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou – mas de poder tocar-lhe…
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.
Viver em casa como toda a gente.
Não ter juízo nos meus livros – mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.
Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas –
À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.
Ter força num dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai:
– Não mandar telegramas ao meu Pai,
– Não andar por Paris, como ando, às moscas.
Levantar-me e sair – não precisar
De hora e meia antes de vir prà rua.
– Pôr termo a isto de viver na lua,
– Perder a “frousse” das correntes de ar.
Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento –
Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento.
Que tudo em mim é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o Oiro em chumbo se derrete
Por meu Azar ou minha Zoina suada…
Paris-janeiro 1916
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12.10.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados
os loucos:
meu abraço é cada vez mais largo
envolve-os a todos!
Ó minha vontade, ó meu desejo
— os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!…
(A luz do Sol beija e fecunda
mas os místicos andaram pelos séculos
construindo noites
geladas solidões.)
(Manuel da Fonseca, in “Poemas Dispersos”)
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28.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui
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27.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
“Por teu livre pensamento
foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento.
E apenas ouves o mar.
“Levaram-te, era já noite:
a treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite de
todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite, e
nunca mais se fez dia.
“Ai dessa noite o veneno
persiste em me envenenar.
Ouço apenas o silêncio que
ficou em teu lugar.
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!”
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25.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Pára-me de repente o Pensamento…
– Como se de repente sofreado
Na Doida Correria… em que, levado…
– Anda em Busca… da Paz… do Esquecimento.
– Pára Surpreso… Escrutador…
Atento Como pára… um Cavalo
Alucinado
Ante um Abismo… ante seus pés rasgado…
– Pára… e Fica… e Demora-se um Momento…
Vem trazido na Doida Correria Pára
à beira do Abismo e se demora
E Mergulha na Noite, Escura e Fria Um
Olhar d’Aço, que na Noite explora…
– Mas a Espora da dor seu flanco estria…
– E Ele Galga… e Prossegue… sob a Espora!
(A imagem é uma fotografia do poeta)
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22.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre…
Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa…
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21.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espapaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam.
Os girassóis
amarelo!
resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebeias, dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçon de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.
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20.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.
És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.
És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.
És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço…
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.
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01.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
(As imagens e a realização deste filme é de autoria de Patrick Storhaye )
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19.07.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo sem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.
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17.07.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Acordo-me. Acordo-te. Sorrio.
E sobre a tua pele que a minha adora,
navega o meu desejo, esse navio
que sempre parte e nunca vai embora.
E como um animal uivando o cio
de um milénio, de um mês ou uma hora,
não sei se morro ou vivo, ou choro ou rio,
só sei que a eternidade é o agora.
E calam-se as palavras, uma a uma,
feitas de sal, saliva, dor e espuma,
com a exacta dosagem da alegria.
Bom dia, meu amor! O teu sorriso
é tudo o que me falta, o que eu preciso
para acender a luz de cada dia.
(Joaquim Pessoa, in “Os dias não andam satisfeitos”,Edições Esgotadas, Março 2017.)
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10.07.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não é fácil
Continuar a esperar
Que os amigos voltem
Duma viagem sem fim
É assim que percebemos
Que o infinito
É o supremo destino
Do corpo voando nas nuvens
As pegadas que ficam marcadas no chão
Servirão o aço da memória
Continuando outra espera
Num lugar de sementes
Libertadas nas montanhas de origem
Como próximo ponto de encontro
(Do livro “A Alquimia das Metáforas” – Pinturas de Nunes Silva – Ed. arandis)
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