Nota biográfica

José Egito de Oliveira Gonçalves, mais conhecido por Egito Gonçalves, foi um poeta, editor e tradutor português.
Publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como atividade profissional a administração de uma editora. (8 de abril de 1920, Matosinhos - 29 de janeiro de 2001, Porto) Wikipédia

“Sobre os poemas”, de Egito Gonçalves.

12.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há poetas que constroem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amassam
— lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.

2
Tal a “Cadeia de Santo Onofre:
Copie o texto: envie a cinco amigos”…
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.


3
Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.


Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
ténue tinta azul no papel claro …

Os poetas têm
como os peles-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.

4
Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegramas do medo.

Enquanto bebem o café um histrião noturno
arenga; executa o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.

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“Poema (sem título) de Egito Gonçalves.

16.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Recebo-te em cada manhã com o mesmo espanto, deixo-me

banhar por essas folhas dobradas onde me entregas a

serenidade e a alegria.

Decoro a lenta sedimentação do teu passado, dores 

fos­silizadas, estrato acumulado em anos de que estou
ausente,

caminhos sem aberturas.

Outros em que me reconheço nos marcos que limitam 

a paisagem, nos rápidos sorrisos que os olhos velavam,

na mudez de interrogações não formuladas.

Leira onde se expõem momentos fugidios hoje
inflorescentes, 

grão intacto onde a inocência se mantinha à espera 

do solo.

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Poema (sem título), de Egito Gonçalves.

06.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sinto sob a nuca o pulsar

das tuas ancas. Escrevo

no puro azul do ar

a fórmula do teu nome,

o destino, este fogo. A calma 

da manhã dá-me

o silêncio suave de te ter,

de esquecer a fronteira…

Estás, longe do luto, da cidra

solitária. Uma ave

— cegonha ou garça? — agita

o céu da gândara, as linhas

da ternura. Um outono

de orvalho, comovido, 

veste-me — ou é

a água dos teus lábios?

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Egito Gonçalves – “Notícias do bloqueio”

21.07.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

guerra

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos…
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…

Dirás como trabalhamos em silêncio, como
comemos silêncio, bebemos silêncio, nadamos
e morremos feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote aos que
encontrares de fora das muralhas o mundo em
que nos vemos, poesia massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável o
segredo das torres que nos erguem, e suspensa
delas uma flor em lume grita o seu nome
incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade desfigurada
por feridas de granadas e, enquanto a água e
os víveres escasseiam, aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

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Egito Gonçalves – “Muda-se o tema”

18.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Muda-se o tema, onde o mar começa.
A aventura é o mar ou essa forma
que se forma depois, que vai viver
na memória dos dias? De uma ilha lembro
onde o mar me levou e do conhecimento
várias portas me abriu. O oceano
começava antes, acabava depois, ali
só prosseguia, embalando-me em noites
de velame abatido, de fáceis ananases,
de alta mastreação tocada de saudade
lucilante como a esteira do luar.
Mais tarde soube que estava sem trabalho
pois não havia Índias nem de infantas
o prémio de um sorriso. Mas combates
havia para outros, torpedos e canhões
longe não andavam. Daquela guerra
eu só fingia ser. Ancorado veleiro
eu pensaria a ilha, verde como o slogan,
nela não enjoava como, sobre o mar,
me acontecia nos navios da Insulana.
Marinheiro, eu não era. O mundo antigo
vivia-se nos livros, reproduções offset
multiplicavam os atlas, alguns poetas
banhariam na Grécia os seus poemas. Eu,
estava ali, parado no tempo, onde
o mar começava e acabava, esperando
que na praça da Matriz o relógio do sono
badalasse o regresso.
A minha casa
estava a oriente, ali acabaria
para mim o mar, e só quando da praia
o visse, a imaginação poderia segredar-me
que os meus pés começava e da viagem
seria excluído. Um rosto sem segredos
que as marés negras adoecem, e me acena
quando o avião desce e os motores destroçam
um mar de nuvens que se desfaz e recomeça.

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