Nota biográfica

Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (Lisboa, 24 de Novembro de 1906 - Lisboa, 19 de Fevereiro de 1997), português, foi um químico, professor de Físico-Química do ensino secundário no Liceu Pedro Nunes e Liceu Camões, pedagogo, investigador de História da ciência em Portugal, divulgador da ciência, e poeta sob o pseudónimo de António Gedeão. Pedra Filosofal e Lágrima de Preta são dois dos seus mais célebres poemas.

“Amador sem coisa amada”, poema de António Gedeão.

22.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Resolvi andar na rua
com os olhos postos no chão.
Quem me quiser que me chame
ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar
de tédio os olhos vidrados,
olharei para os prédios altos,
para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,
aprendiz colegial.
sou amador da existência,
não chego a profissional.

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“Lágrimas tudo”, poema de António Gedeão.

26.01.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Só de pensar amor, como se o procurasse,
encheram-se-me os olhos de humidade.
Exactamente os mesmos olhos, a mesma fonte,
(se buscasse
fitá-los na outra face,
do ódio, da violência, da impiedade.

Porquê, lágrimas tudo?

Faz chorar o menino quando nasce,
e o homem quando morre.
E a desumana voz que grita: Faça! — e faz-se,
e a outra, a que nos fala, e em doce tom discorre.
E as equações diferenciais do espaço,
e os três metros quadrados de uma cela.
E a truculenta família do palhaço,
e a fétida ninhada da cadela.
E as aguarelas frescas da manhã,
e o lápis de carvão da sombra traiçoeira.
E os burgueses do Rodin,
e os robertos da feira,
e a Capela Sistina,
e os bonecos de barro de Barcelos,
e a menina de vidro, opalescente e fina,
e a velha bruxa de excrementos nos cabelos.

Tudo, lágrimas tudo.
Porquê, lágrimas tudo?

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“Soneto” de António Gedeão.

20.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não pode Amor por mais que as falas mude
exprimir quanto pesa ou quanto mede.
Se acaso a comoção falar concede
é tão mesquinho o tom que o desilude.

Busca no rosto a cor que mais o ajude,
magoado parecer aos olhos pede,
pois quando a fala a tudo o mais excede
não pode ser Amor com tal virtude.

Também eu das palavras me arreceio,
também sofro do mal sem saber onde
busque a expressão maior do meu anseio.

E acaso perde, o Amor que a fala esconde,
em verdade, em beleza, em doce enleio?
Olha bem os meus olhos, e responde.

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António Gedeão – “Aurora Boreal”

15.10.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.

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António Gedeão – “Estrela da Manhã”

03.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Numa qualquer manhã, um qualquer ser,
vindo de qualquer pai,
acorda e vai.
Vai.
Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos;
nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar.
E em seu impessoal desejo latejam todos os restos
de quantos desejos ficaram antes por desejar.
Abre os olhos e vai.
Vai descobrir as velas dos moinhos
e as rodas que os eixos movem,
o tear que tece o linho,
a espuma roxa dos vinhos,
incêndio na face jovem.
Cego, vê, de olhos abertos.
Sozinho, a multidão vai com ele.
Bagas de instintos despertos
ressuma-lhe à flor da pele.
Vai, belo monstro.
Arranca
as florestas com os teus dentes.
Imprime na areia branca
teus voluntariosos pés incandescentes.
Vai
Segue o teu meridiano, esse,
o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais;
o plano de barro que nunca endurece,
onde a memória da espécie
grava os sonos imortais.
Vai
Lábios húmidos do amor da manhã,
polpas de cereja.
Desdobra-te e beija
em ti mesmo a carne sã.
Vai
À tua cega passagem
a convulsão da folhagem
diz aos ecos
“tem que ser”.
O mar que rola e se agita,
toda a música infinita,
tudo grita
“tem que ser”.
Cerra os dentes, alma aflita.
Tudo grita
“Tem que ser .”

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António Gedeão – “Arma Secreta”

02.04.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

foguetao13

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na torre erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

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António Gedeão – “Melodia proibida”

31.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

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Uma emoção pequenina
me vem do lado de lá.
Rompe através da cortina
que envolve o mundo de cá.

Chega ofegante e risonha
a escorrer gotas de orvalho.
Nuns farrapos de vergonha
tem todo o seu agasalho.

Dá-lhe o sol num de repente.
Fulge rápida, num grito.
Flor de silêncio estridente,
continente de infinito.

Gota de som, dedilhada
em fios de Sol, chispando
espirros de luz irisada
como guizos tilintando.

Chama do espírito vivo
a velar corpo de luto.
Essa é a onda que escuto
quando sorrio sem motivo.

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António Gedeão – “Enquanto.”

05.06.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

abandonadas

Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser
verdade, enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia, o poeta
escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA

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António Gedeão – “Declaração de Amor”

28.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

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Excita-me a tua presença, ó Árvore – ó Árvores todas!

Desejo-te (desejo-vos) como se fosses Carne, e eu Desejo.

Como se eu fosse o vento que preside às tuas bodas,

e te cicia em redor, e te fecunda num aliciante beijo.
Ponho os olhos em ti e entretenho-me a pensar que sou mãos,

todo mãos que te envolvem o tronco e te sacodem convulsivamente.

Requebras-te com volúpia, e os teus emaranhados cabelos louçãos

fustigam o ar como látegos, com toda a força que este amor me consente.
Ó árvore minha débil! Ó prazer dos meus olhos extáticos!

Ó filtro da luz do Sol! Ó refresco dos sedentos!

Destila nos meus lábios as gotas dos teus ésteres aromáticos,

unge a minha epiderme com teus macios unguentos.
Desnuda-me a tua intimidade, ó Árvore! Diz-me a que segredos recorres

para te desenrolares em flores e em frutos num cíclico desvario.

Porque é que tudo morre à tua volta e tu não morres,

e aceitas sempre o Amor com renovado cio.
Inicia-me nos teus mistérios, ó feiticeira dos cabelos verdes!

Ensina-me a transformar um raio de Sol em suculenta carnadura,

e nesses perfumes subtis que a toda a hora perdes,

prolongando o teu ser no ar que te emoldura.
É através de ti, ó Árvore, que celebro os esponsais entre mim e a Natureza.

É através de ti que bebo a nuvem fresca e mordo a terra ardente.

É de ti que recebo as leis do Amor e da Beleza.

Amo-te, ó Árvore, apaixonadamente!

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António Gedeão – “Domingo” (sem música)

15.09.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio alegremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.
Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.
É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.”

de, António Gedeão in “Novos Poemas Póstumos”, “Poesia Completa”, pág. 188

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António Gedeão – “Lágrima de preta” (Sem música)

25.07.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

lagrima

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
 
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
 
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

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António Gedeão – “Dez reis de esperança”

03.06.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

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António Gedeão – “Poema do homem-rã”

02.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sou feliz por ter nascido
no tempo dos homens-rãs
que descem ao mar perdido
na doçura das manhãs.
Mergulham, imponderáveis,
por entre as águas tranquilas,
enquanto singram, em filas,
peixinhos de cores amáveis.
Vão e vêm, serpenteiam,
em compassos de ballet.
Seus lentos gestos penteiam
madeixas que ninguém vê.
Com barbatanas calçadas
e pulmões a tiracolo,
roçam-se os homens no solo
sob um céu de águas paradas.
Sob o luminoso feixe
correm de um lado para outro,
montam no lombo de um peixe
como no dorso de um potro.
Onde as sereias de espuma?
Tritões escorrendo babugem?
E os monstros cor de ferrugem
rolando trovões na bruma?
Eu sou o homem. O Homem.
Desço ao mar e subo ao céu.
Não há temores que me domem
É tudo meu, tudo meu.

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António Gedeão – “Mãezinha”

01.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem misséis.
Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3.023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.

Vinte e oito por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que só havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido
desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)

Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.

Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.

Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente no maior sossego, às horas em
que entrava e saía do emprego.

Dessas 9 excelentes raprigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.

A que sobeja
chama-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igeja.
Foi a minha mãezinha.

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António Gedeão – “Poema do homem só”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece. 

Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros não se explicam:
arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de dentro se refracta,

nenhum ser nós se transmite.
Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento

sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços, 
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas 
breves das carnes macias; 
dão-se os nervos, dá-se a vida, 
dá-se o sangue gota a gota, 
como uma braçada rota 
dá-se tudo e nada fica.
Mas este íntimo secreto
que no silêncio concentro, 
este oferecer-se de dentro 
num esgotamento completo, 
Este ser-se sem disfarce,
virgem de mal e de bem, 
este dar-se, este entregar-se, 
descobrir-se e desflorar-se, 
é nosso, de mais ninguém.

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António Gedeão – “Domingo”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

ruas_desertas13

“Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio algremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.

Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.

É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.”

de, António Gedeão in “Novos Poemas Póstumos”, “Poesia Completa”, pág. 188

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António Gedeão – “Pedra filosofal”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

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António Gedeão – “Máquina do tempo”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.

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António Gedeão – “A um ti que eu inventei”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluir de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança,
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas com o pensar te pudesses partir.

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António Gedeão – “Calçada de Carriche”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Luísa sobe,
sobe a calçada,
sobe e não pode
que vai cansada.
Sobe, Luísa,
Luísa, sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Saiu de casa
de madrugada;
regressa a casa
é já noite fechada.
Na mão grosseira,
de pele queimada,
leva a lancheira
desengonçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Luísa é nova,
desenxovalhada,
tem perna gorda,
bem torneada.
Ferve lhe o sangue
de afogueada;
saltam lhe os peitos
na caminhada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Passam magalas,
rapaziada,
palpam lhe as coxas,
não dá por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Chegou a casa
não disse nada.
Pegou na filha,
deu lhe a mamada;
bebeu a sopa
numa golada;
lavou a loiça,
varreu a escada;
deu jeito à casa
desarranjada;
coseu a roupa
já remendada;
despiu se à pressa,
desinteressada;
caiu na cama
de uma assentada;
chegou o homem,
viu a deitada;
serviu se dela,
não deu por nada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

Na manhã débil
sem alvorada,
salta da cama,
desembestada;
puxa da filha,
dá lhe a mamada;
veste se à pressa,
desengonçada;
anda, ciranda,
desaustinada;
range o soalho
a cada passada;
salta para a rua,
corre açodada,
galga o passeio,
desce a calçada,
chega à oficina
à hora marcada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga;
toca a sineta
na hora aprazada,
corre à cantina
volta à toada,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga,
puxa que puxa,
larga que larga.
Regressa a casa
é já noite fechada.
Luísa arqueija
pela calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada,
sobe que sobe,
sobe a calçada.
Anda Luísa,
Luísa sobe,
sobe que sobe,
sobe a calçada.

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António Gedeão – “Lágrima de preta”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de Sódio.

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António Gedeão – “Certezas, precisam-se”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Preciso urgentemente de adquirir meia dúzia de valores absolutos,
inexpugnáveis e impenetráveis,
firmes e surdos como rochedos.

Preciso urgentemente de adquirir certezas,
certezas inabaláveis, imensas certezas, montes de certezas,
certezas a propósito de tudo e de nada,
afirmadas com autoridade, em voz alta para que todos oiçam,
com desassombro, com ênfase, com dignidade,
acompanhadas de perfurantes censuras no olhar carregado, oblíquo.

Preciso urgentemente de ter razão,
de ter imensas razões, montes de razões,
de eu próprio me instituir em razão.
Ser razão!
Dar um soco furibundo e convicto no tampo da mesa
e espadanar razões nas ventas da assistência.

Preciso urgentemente de ter convicções profundas,
argumentos decisivos,
ideias feitas à altura das circunstâncias.
Preciso de correr convictamente ao encontro de qualquer coisa,
de gritar, de berrar, de ter apoplexias sagradas
em defesa dessa coisa.
Preciso de considerar imbecis todos os que tiverem opiniões diferentes

da minha,
de os mandar, sem rebuço, para o diabo que os carregue,
de os prejudicar, sem remorsos, de todas as maneiras possíveis,
de lhes tapar a boca,
de lhes cortar as frases no meio,
de lhes virar as costas ostensivamente.
Preciso de ter amigos da mesma cor, caras unhacas,
que me dêem palmadinhas nas costas,
que me chamem pá e me façam brindes
em almoços de camaradagem.
Preciso de me acocorar à volta da mesa do café,
e resolver os problemas sociais
entre ruidosos alívios de expectoração.
Preciso de encher o peito e cantar loas,
e enrouquecer a dar vivas,
de atirar o chapéu ao ar,
de saber de cor as frequências dos emissores.
O que tudo são símbolos e sinais de certezas.
Certezas!
Imensas certezas! Montes de certezas!
Pirinéus, Urais, Himalaias de certezas!

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António Gedeão – “Dia de Natal”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha~se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda~o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus,
doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

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António Gedeão – “Poema para Galileo”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,
aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Oficios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Oficio.
Disse Galeria dos Oficios.)
Aquele retrato da Galeria dos Oficios da requintada Florença.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della
Signoria …
Eu sei … Eu sei …
As margens doces do Amo às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!
Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.
Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência das coisas que me deste.
Eu,
quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar – que disparate, Galileo!
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça
sem a menor hesitação –
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa
ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.
Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilização.
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas
os lábios,
percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou
a vê-las -,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era
tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.

E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.
Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste
pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de
braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer,
homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.
Por isso estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.

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António Gedeão – “Saudades da Terra”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram-me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho
e a adormecê-la
e as meninas a correrem atrás das pombas
e os meninos a jogarem ao futebol.
A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.
Mas … saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse tê-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer – quem sabe? – ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.

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António Gedeão – “Aos domingos…”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Aos domingos as ruas estão desertas
e parecem mais largas.
Ausentaram-se os homens à procura
de outros novos cansaços que os descansem.
Seu livre arbítrio algremente os força
a fazerem o mesmo que fizeram
os outros que foram fazer o que eles fazem.
E assim as ruas ficaram mais largas,
o ar mais limpo, o sol mais descoberto.
Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem as pernas
e espetarem o ventre e alargarem os braços
no amplexo de amor que só eles conhecem.
O olhar aberto às largas perspectivas
difunde-se e trespassa
os sucessivos, transparentes planos.

Um cão vadio sem pressas e sem medos
fareja o contentor tombado no passeio.

É domingo.
E aos domingos as árvores crescem na cidade,
e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a cantar empoleirados nelas.
Tudo volta ao princípio.
E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume das vacas
e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre as pedras
levando consigo a imagem das flores amarelas do tojo,
enquanto o transeunte,
no deslumbramento do encontro inesperado,
eleva a mão e acena
para o passeio fronteiro onde não vai ninguém.”

de, António Gedeão in “Novos Poemas Póstumos”, “Poesia Completa”, pág. 188

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