Nota biográfica >>

Ferreira Gullar, pseudónimo de José Ribamar Ferreira (São Luís, 10 de setembro de 1930) é um poeta, crítico de arte,biógrafo, tradutor, memorialista e ensaísta brasileiro e um dos fundadores do neoconcretismo.

Ferreira Gullar – “Poema sujo”

05.03.2014

ferrreira_gullar

turvo turvo

a turva

mão do sopro

contra o muro

escuro

menos menos

menos que escuro

menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo

escuro

mais que escuro:

claro

como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma

e tudo

(ou quase)

um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas

azul

era o gato

azul

era o galo

azul

o cavalo

azul

teu cu

tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de

banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como

uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma

entrada para

eu não sabia tu

não sabias

fazer girar a vida

com seu montão de estrelas e oceano

entrando-nos em ti

bela bela

mais que bela

mas como era o nome dela?

Não era Helena nem Vera

nem Nara nem Gabriela

nem Tereza nem Maria

Seu nome seu nome era…

Perdeu-se na carne fria

perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia

perdeu-se na profusão das coisas acontecidas

constelações de alfabeto

noites escritas a giz

pastilhas de aniversário

domingos de futebol

enterros corsos comícios

roleta bilhar baralho

mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa

e de tempo: mas está comigo está

perdido comigo

teu nome

em alguma gaveta

Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís

do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos

e pais dentro de um enigma?

mas que importa um nome

debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre

cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de

garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já

um prato de louça ordinária não dura tanto

e as facas se perdem e os garfos

se perdem pela vida caem

pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos

e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-cidreira

e as grossas orelhas de hortelã

quanta coisa se perde

nesta vida

Como se perdeu o que eles falavam ali

mastigando

misturando feijão com farinha e nacos de carne assada

e diziam coisas tão reais como a toalha bordada

ou a tosse da tia no quarto

e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa

janela

tão reais que

se apagaram para sempre

Ou não?

Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem

que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás

e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,

ou dentro de um ônibus

ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico

acima do arco-íris

perfeitamente fora

do rigor cronológico

sonhando

Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas

balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas

cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do

jantar,

voais comigo

sobre continentes e mares

E também rastejais comigo

pelos túneis das noites clandestinas

sob o céu constelado do país

entre fulgor e lepra

debaixo de lençóis de lama e de terror

vos esgueirais comigo, mesas velhas,

armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,

dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais

que o dia venha

E depois de tanto

que importa um nome?

Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo:

te chamo aurora

te chamo água

te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema

nas aparições do sonho
- E esta mulher a tossir dentro de casa!

Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,

O perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.

E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de

dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)

E todos buscavam

num sorriso num gesto

nas conversas da esquina

no coito em pé na calçada escura do Quartel

no adultério

no roubo

a decifração do enigma
- Que faço entre coisas?
- De que me defendo?

Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas

(como pode o perfume 
nascer assim?)

Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam

pés de tomate

Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins

mais verdes que a esperança

(ou o fogo
de teus olhos)

Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade

sob as sombras da guerra:

a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg

catalinas torpedeamentos a quinta-coluna os fascistas os nazistas os

comunistas o repórter Esso a discussão na quitanda a querosene o

sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as

montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João

Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de

tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste.

Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava

rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco

que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava

tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,

pelo meu carneiro manso

por minha cidade azul

pelo Brasil salve salve,

Stalingrado resiste.

A cada nova manhã

nas janelas nas esquinas nas manchetes dos jornais

Mas a poesia não existia ainda.

Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas.

Olhos. Braços. Seios. Bocas.

Vidraça verde, jasmim.

Bicicleta no domingo.

Papagaios de papel.

Retreta na praça.

Luto.

Homem morto no mercado

sangue humano nos legumes.

Mundo sem voz, coisa opaca.

Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?

Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de

gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos

Do corpo. Mas que é o corpo?

Meu corpo feito de carne e de osso.

Esse osso que não vejo, maxilares, costelas

flexível armação que me sustenta no espaço

que não me deixa desabar como um saco

vazio

que guarda as vísceras todas

funcionando
como retortas e tubos

fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras

e as mentiras

e os carinhos mais doces mais sacanas

mais sentidos

para explodir uma galáxia

de leite

no centro de tuas coxas no fundo

de tua noite ávida

cheiros de umbigo e de vagina

graves cheiros indecifráveis

como símbolos

do corpo

do teu corpo do meu corpo

corpo

que pode um sabre rasgar

um caco de vidro

uma navalha

meu corpo cheio de sangue

que o irriga como a um continente

ou um jardim

circulando por meus braços

por meus dedos

enquanto discuto caminho

lembro relembro

meu sangue feito de gases que aspiro

dos céus da cidade estrangeira

com a ajuda dos plátanos

e que pode – por um descuido – esvair-se por meu

pulso

aberto

Meu corpo

que deitado na cama vejo

como um objeto no espaço

que mede 1,70m

e que sou eu: essa coisa deitada

barriga pernas e pés

com cinco dedos cada um (por que
 não seis?)

joelhos e tornozelos

para mover-se

sentar-se

levantar-se

meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo

meu corpo feito de água

e cinza

que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado

a toda essa massa de hidrogênio e hélio

que se desintegra e reintegra

sem se saber pra quê

Corpo meu corpo corpo

que tem um nariz assim uma boca

dois olho
s
e um certo jeito de sorrir

de falar

que minha mãe identifica como sendo de seu filho

que meu filho identifica

como sendo de seu pai

corpo que se pára de funcionar provoca

um grave acontecimento na família:

sem ele não há José Ribamar Ferreira

não há Ferreira Gullar

e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta

estarão esquecidas para sempre

corpo-facho corpo-fátuo corpo-fato

atravessados de cheiros de galinheiros e rato
 na quitanda ninho

de rato
cocô de gato
sal azinhavre sapato

brilhantina anel barato

língua no cu na boceta cavalo-de-crista chato

nos pentelhos

com meu corpo-falo

insondável incompreendido

meu cão doméstico meu dono

cheio de flor e de sono

meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio

de tudo como um monturo

de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias

sambas e frevos azuis

de Fra Angelico verdes

de Cézanne

matéria-sonho de Volpi

Mas sobretudo meu

corpo

nordestino

Mais que isso

maranhense

mais que isso

anluisense

mais que isso

ferreirense

newtoniense

alzirense

meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres

ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo

sob as balas do 24º BC

na revolução de 30

e que desde então segue pulsando como um relógio

num tic tac que não se ouve

(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração)

tic tac tic tac

enquanto vou entre automóveis e ônibus

entre vitrinas de roupas

nas livrarias

nos bares

tic tac tic tac

pulsando há 45 anos

esse coração oculto

pulsando no meio da noite, da neve, da chuva

debaixo da capa, do paletó, da camisa

debaixo da pele, da carne,

combatente clandestino aliado da classe operária

meu coração de menino.

Este poema faz parte do CD por mim editado, “Os 10+”. Contem 10 poemas de 10 poetas, considerados por uma revista literária brasileira, como os mais importantes da língua Portuguesa.

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