Nota biográfica >>

Nicolau Saião nasceu em Monforte do Alentejo em 1946.  Poeta, pintor, publicista e actor/declamador.

Nicolau Saião – “Cantata”

04.07.2012

Saint-Éxupery desejava
algo que se derramasse sobre o Homem
como um canto gregoriano,  tão puro
como as vozes fluindo num claustro ou numa
sala abacial. Saint-Éxupery
 
no seu avião, entre o reflexo das estrelas
atravessando o deserto de Al-Aifa ou Djamila
sentia para além do odor do couro
persistentemente colado à sua figura
de pássaro desaparecido
na cabina que era a sua catedral
lunar e terrena
a luz das vozes como numa
manhã de Novembro: os vultos encapuçados
cruzando timbres, os tenores e os baixos
trocando o seu jogo simultaneamente
pesado e leve
que faz comunicar céu e terra
pela mesma escada sonora
(o mundo de baixo e o de cima
ligam-se pelas colcheias e semifusas)
que mais tarde iria fascinar Mozart
Haydn, Pierre-Henry, Johann Sebastian Bach.
 
Mas é fácil multiplicar os exemplos: José
ou Pedro, João ou António ou Gaspar, simples
cidadãos dos diferentes países dos continentes
onde a araucária ondula contra o vento
ou a oliveira tremula sob a chuva
numa vereda da montanha
num quarto ou numa sala ou pela rua
ligam serenamente um botão
distraidamente   enquanto voltam as folhas dum livro
ou acendem um cigarro
e coçam um qualquer recanto do corpo
e levam copo ou chávena aos lábios
que antes murmuraram para alguém
“repara” ou “queres ouvir?”
ou simplesmente nada disseram
presos ao silêncio envolvente
da noite de Primavera
– e a grande onda salta através dos anos
singelamente
e rodeia os humildes objectos em torno
e flui delicadamente e consagra
ouvidos, olhos, mãos que repousam
subitamente serenas. O canto
cumprindo os mistérios que perpetuam
tardes e madrugadas
é junto de nós uma entidade que palpita
que ilumina como a brusca chama dum fósforo
e nos diz    nos diz  veladamente
 
os séculos e os momentos    incomensuráveis.
 
 (in “Flauta de Pan”)

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