Agostinho Neto – “A quitanda”
04.03.2012
Muito sol
e a quitandeira
à sombra da mulemba.
Laranja, minha senhora,
laranjinha boa!
A luz brinca na cidade
o seu quente jogo
de claros e escuros
e a vida brinca em corações aflitos
o jogo da cabra cega.
A quitandeira que vende fruta
Vende-se.
Minha senhora laranja,
laranjinha boa!
Compra laranja doces
Compra-me também o amargo
desta tortura da vida sem vida.
Compra-me a infância do espírito
este botão de rosa que não abriu
princípio impelido ainda para um início.
Laranja, minha senhora!
Esgotaram-se os sorrisos com que chorava
eu já não choro.
E aí vão as minhas esperanças
como foi o sangue dos meus filhos
amassado no pó das estradas
enterrado nas roças
e o meu suor embebido nos fios de algodão
que me cobrem.
Como o esforço foi oferecido
à segurança das máquinas
à beleza das ruas asfaltadas
de prédios de vários andares
à comodidade de senhores ricos
à alegria dispersa por cidades
e eu
me fui confundindo
com os próprios problemas da existência.
Aí vão as laranjas
como eu me ofereci ao álcool
para me anestesiar
e me entreguei às religiões
para me insensibilizar
e me atordoei para viver.
Tudo tenho dado.
Até mesmo a minha dor
e a poesia dos meus seios nus
Entreguei-a aos poetas.
Agora vendo-me eu própria.
Compra laranjas
minha senhora!
Leva-me para as quitandas da Vida
o meu preço é único:
sangue.
Talvez vendendo-me
eu me possua.
Compra laranjas!
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