Nota biográfica >>

Ruy de Moura Belo (São João da Ribeira, Rio Maior, 27 de Fevereiro de 1933 - Queluz, 8 de agosto de 1978) foi um poeta e ensaísta português.

Ruy Belo – “Maria Teresa”

17.01.2012

Eu que às vezes encontro sem saber porquê

um simples não sei quê em estátuas retratos antigos

de límpidas mulheres desconhecidas

eu que de súbito à primeira vista me apaixono adolescentemente

por essas mulheres mortas mas contemporâneas

de um pobre poeta português do século vinte

levadas até ele talvez por um discreto gesto

às formas e às cores impresso por um homem

que na arte encontrava a única razão de vida

abro a pasta e deparo com o teu retrato

um retrato de passe anos atrás tirado

no sítio suburbano onde primeiro vivemos
e juntos
suportámos com surpresa a solidão
de sermos dois
e ela só vergar os ombros onde os dias nos poisavam

Conheço outros retratos teus onde também estás viva

um deles bem me lembro estava à minha espera em saint-malo

uma tarde ao voltar do monte saint michel

nesse verão bretão onde então procurava

justificação por mínima que fosse para a vida

numa das muitas fugas de mim próprio

que às vezes empreendo embora antecipadamente certo

de que só pela morte enfim me encontrarei comigo

com todos quantos verdadeiramente amei

alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos

sobretudo sedentos de justiça

de que depois somente de bem morto hei-de dispor daquela paz

que sempre apeteci mas nunca procurei

até por não ter tempo para isso nem sequer para saber

coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei

que muito mais passei naquilo em que fiquei

nem que fossem os filhos ou os versos

que fiquei muito mais naquilo onde passei

como passos na areia no inverno ou repentinas sensações

de me sentir de súbito sensivelmente bem

encher o peito de ar sentir-me vivo

São retratos diferentes de quem foste um breve
instante
e nele floriste e apenas não murchaste

por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias

Mas há em todos eles uma graça inesperada

a surpresa da corça ou restos dessa raça

que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres

expressão sempre surpreendente da surpresa

mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te conheço

Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta

a madrugada que era e é esse teu riso claro

quem primeiro falou de riso claro

talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os seixos de
um ribeiro

talvez a houvesse visto branca e fresca

mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora

quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir

e sei que o som da água imita o teu sorriso

Talvez dentro de séculos se não fale já de ti

coisa aliás sem maior importância

que a de não ter alguém deixado o teu retrato

em qualquer dos museus esparsos pelo mundo

Eu estarei morto e pouco poderei fazer

por ti simples mulher da minha vida

Mas isso não importa importa esta manhã

este bar de milão onde olho o teu retrato

enquanto espero o meu pequeno almoço

saboreio as cervejas em jejum tomadas

e começam de súbito a chegar aos meus ouvidos

inesperados os primeiros acordes do concerto imperador

Se um dia penso porventura te perder

mulher simples recôndita e surpreendente

sobre quem recaiu o peso do meu nome

só então saberei quanto valias verdadeiramente

Estás presente em mim como ninguém
m
e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres

além de ti além de minha mãe

Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste

a tua alegre vida irrequieta

no único infeliz dos teus negócios

por um poeta pobre velho e feio como eu

Contigo aprendi coisas tão simples como

a forma de convívio com o meu cabelo ralo

e a diversa cor que há nos olhos das pessoas

Só tu me acompanhaste súbitos momentos

quando tudo ruía ao meu redor

e me sentia só e no cabo do mundo

Contigo fui cruel no dia a dia

mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva

Não posso dar-te mais do que te dou

este molhado olhar de homem que morre

e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente

Bons dias maria teresa até depois

preciso de tomar o meu pequeno almoço

a cerveja era boa mas é bom comer

como come qualquer homem normal

e me poupa ao perigo de até pela idade

me converter subitamente num sentimental

Poema Elogio a Maria Teresa, de Rui Belo
Maria Teresa era Mulher de Ruy Belo

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