Nota biográfica >>

Foi poeta, contista, jornalista e mulher solitária. Escritora durante os anos em que o Estado Novo queria a mulher em casa. Ostracizada pela Revolução de Abril, Natércia Freire acabou por cair num silêncio imerecido. Deixa um legado poético que merece ser (re)descoberto.

Natércia Freire – “Os instrumentos”

10.01.2012

Desapareceram os símbolos das cidades,
Os instrumentos dos símbolos ainda não
desapareceram,

É possível que, de repente, de leste a oeste, de oriente a
ocidente,
Nas paredes, no ar, no solo, nos canteiros,
Nos velhos troncos de árvores,
Nos jogos de água viva,

Nas mudas bibliotecas, em livros esquecidos,
Nos palcos dos teatros, nas eléctricas luzes,
Nas orquestras sem pátria dos músicos planetas,

Se revelem sinais, locais de Ásias secretas,

Mas da cegueira à paz, vão ângulos de som.
Os vértices de amor, oscilam ténues fumos,

Os símbolos são homens, esventrados em explosões,
São Osíris dispersos. Deuses em negros versos,
Dos olhos sem retinas – que já todos desvelam,
Dos gestos essenciais – pelos quais todos choram,

Se compõe esta frente em marcha silenciosa,
De esotéricas vidas e histórias demolidas,

De superfícies brancas em sinfonias brancas,
De surdos e de loucos, orquestradas nas ondas.

Bronzes de águas abertas, nas cascatas libertas,
Dos países do Ar para os dias de Sombra.

Por visitar a Lua recebe-se a Loucura.
Por visitar a Luz, recebe-se a cegueira.

É preciso dormir como quem apodrece
E sossegar no pó, sem pena de ser só.

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