Nota biográfica

Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português. É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões.

Fernando Pessoa – “Un soir à Lima”

15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Vem a voz da radiofonia e dá

A notícia num arrastamento vão:

«A seguir

Un soir à Lima»…

Cesso de sorrir…

Pára-me o coração…

E, de repente, 

Essa querida e maldita melodia 

Rompe do aparelho inconsciente. 

Numa memória súbita e presente

Minha alma se extravia…. 

O grande luar da África fazia 

A encosta arborizada alvinitente. 



A sala em nossa casa era ampla, e estava 

Posta onde, até ao mar, tudo se dava 

À clara escuridão do luar ingente…

Mas só eu, à janela.

Minha mãe estava ao piano

E tocava. 

Exactamente 
«Un Soir à Lima». 



Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está! 

Que é do seu alto porte? 

Da sua voz continuamente acolhedora? 

Do seu sorriso ‘carinhoso e forte? 

O que hoje há 

Que mo recorda é isto que oiço agora 
     
Un Soir à Lima.

Prossegue na radiofonia 

A mesma, a mesma melodia 
O mesmo
«Un Soir à Lima». 



Seu cabelo grisalho era tão lindo 

Sob a luz 

E eu que nunca julguei que ela morresse 

E me deixasse entregue a quem eu sou! 

Morreu, mas eu sou sempre o seu menino. 

Ninguém é homem para a sua mãe! 


(…)



Onde é que a hora, e o lar e o amor está 

Quando, mãe, mãe, tocavas 

Un Soir à Lima? 


E num recanto de cadeira grande

Minha irmã, 

Pequena e encolhidinha 

Não sabe se dorme se não.

(…)





Meu padrasto 

(Que homem! que alma! que coração!)

Reclinava o seu corpo basto

De atleta sossegado e são 

Na poltrona maior 

E ouvia, fumando e cismando,

E o seu olhar azul não tinha cor. 

A minha irmã, criança,

No recanto da sua poltrona

Enrolada, ouvia a dormir

E a sorrir 

Que estava alguém tocando

Se calhar uma dança.



E eu, de pé, ante a janela 

Via todo o luar de toda a África inundar

A paisagem e o meu sonhar. 



Onde tudo isto está! 

Un Soir à Lima, 

Quebra-te, coração! 


17 – 9 – 1935

In Poesia 1931-1935 e não datada , Assírio & Alvim, ed. 2006
Fernando Pessoa
[UN SOIR À LIMA]

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