“D. Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes.
10.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
A primeira página de grandes obras da literatura.
10.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Dom Quixote de La Mancha (Don Quijote de la Mancha em castelhano) é um livro escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616). O título e ortografia originais eram El ingenioso hidalgo Don Qvixote de La Mancha, com sua primeira edição publicada em Madrid no ano de 1605. É composto por 126 capítulos, divididos em duas partes: a primeira surgida em 1605 e a outra em 1615. É considerada a grande criação de Cervantes. O livro é um dos primeiros das línguas européias modernas e é considerado por muitos o expoente máximo da literatura espanhola. Em princípios de maio de 2002, o livro foi escolhido como a melhor obra de ficção de todos os tempos. A votação foi organizada pelo Clubes do Livro Noruegueses e participaram escritores de reconhecimento internacional.
Vivia, não há muito, numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, um fidalgo dos de lança em armeiro, escudo velho, pileca escanzelada e galgo veloz. Dissipavam-lhe três partes dos bens um cozido, de vaca um pouco mais que de carneiro; salpicão as mais das noites; rabugices e lazeiras aos sábados; lentilhas ás sexta-feiras; algum borracho, de melhoria, aos domingos. Saio de velarte, calças de veludo para as festas; pantufos do mesmo; velori do mais fino, com que se honrava nos dias de semana, davam-lhe cabo dos sobejos. Tinha em casa uma patroa que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um criado de fora e de dentro, que tanto lhe selava a besta, como manejava o podão. Calhava a idade do nosso fidalgo com os cinquenta anos; era de compleição robusta, seco de carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça. Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada (no que há alguma dife rença nos autores que deste caso escrevem) ainda que por conjeturas verosímeis se deixe perceber que se chamava Quijana; porem isto pouco importa ao nosso conto; basta que a narração dele não saia um ponto da verdade. Nos espaços em que estava ocioso (que eram os mais do ano) é de saber que este sobredito fidalgo se ocupava em ler livros de cavalarias, com tanto gosto e a ferro, que olvidou quase totalmente o exercício da caça, e até o amanho da sua fazenda. E a tal ponto chegou a curiosidade e desvario que vendeu muitas nesgas de terra de semeadura, para comprar livros de cavalaria em que ler, e assim levou para casa quantos pôde encontrar. E a nenhuns achava tão bem como aos que compôs o famoso Feliciano de Silva: porque a clareza da prosa, e aquelas intrincadas razões lhe pareciam de pérolas; e mais quando chegava a ler aqueles requebros e carteis, onde em muitas partes achava escrito: «a razão da sem-razão que á minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece que com razão me queixo da vossa formosura»; e também quando lia: «os altos céus que de vossa divindade divinamente com as estrelas vos fortificam, e vos fazem merecedora do merecimento que merece a vossa grandeza». Perdia o juízo o pobre cavaleiro com estas e semelhantes razões, e disvelava-se em compreende-las e decifrar-lhes o sentido, que não lhes arrancara o próprio Aristóteles, nem as percebera se para isso ressuscitasse.
(Texto retirado de uma edição de 1905 da Guimarães & Cª com atualizações de algumas palavras)
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